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Mostrando postagens de abril, 2006

_contos noturnos [8/10]

8. Memorial Porra, aquilo é bom demais. Sempre comi muito daquilo. Minha mãe dá um nome que eu acho feio, mas é esse o nome. Eu comia com meu primo quando era pequeno. Antes de ele se dar bem. Agora a gente se vê pouco, ele virou granfa, se mete com política e tudo. Mas vem da mesma manjedoura que eu: era pobre de marre. Lá em Serra Bonita a gente aprontava todas. E mais algumas. Um dia a Telesp colocou uma torre de celular lá. Dessas de retransmissão. A gente ia nadar na mesma lagoa todos os verões, e no caminho a gente passava pela torre. Foi a primeira caganeira que tive. Meu primo falou (ele era mais velho, a turma toda o obedecia. Eu mais que os outros) "hoje à noite a gente vem aqui, ó" e apontou para a torre. Era pra subir no mais alto e ver a cidade lá de cima. Deu medo na mesma hora, antes mesmo de pisar no ferro da escada. Nadamos, voltamos à tardezinha. Oito horas ele saiu da casa dele e eu vi. Me escondi debaixo da cama. Cadê o Pedro, Tia Creuza? Não sei, não. Dev

_contos noturnos [7/10]

7. O assalto: 2 Perto das nove horas da noite o silêncio só é perturbado pelo ruído de televisores ligados em barraco esparsos. A televisão substituiu a fé e é o ópio dos pobres. A escuridão dos becos torna o silêncio ainda mais opressor. Os olhos de Gilsinho demoraram para se adaptar à luz forte do lampião aceso no barraco de Manivela. E aí, Vela? Cadê a Dona Ara? Suas mãos cobriam a incidência bruta da luz. Saiu. Ta no culto. Senta aí. Sobre a mesa, um dos únicos móveis na cozinha, havia uma gororoba estranha. Quer? Porra, Manivela, vamo aê. A gente tem que seguir o combinado, cara. Mas me deu fome, Gilsinho. Cacete, como vou roubar a casa do filho-da-puta com fome? A primeira porta que eu abrir vai ser a da geladeira. Riram juntos. Saíram no escuro da favela a caminho do bairro chique, cada um com uma mochila nas costas. Aí, te falo: se o filho-da-puta não tivesse no "X" eu ia matar ele hoje. Não se fala comigo como ele falou! Otário. Aê, Gilsinho, seguinte: o cara ta fudi

_contos noturnos [6/10]

6. Favela em cores Pedro Dado e Celsinho 38 conversavam sentados em um mureta da rua 16. Alí faziam ponto já há quase três meses. Bom tempo pra uma boca. Bebiam conhaque em uma garrafa que estava sobre o Agora do dia. O jornal tem mais sangue que um banco de sangue. E aí, Netinho, vendeu muito hoje? Que nada, Trêsoito, o trem tava devagar hoje. Dá um gole dessa coroti aí. Conhaque? E aí, Dado. Beleza? Bebe aí. No fim da tarde a rapaziada da comunidade costuma se reunir nos bares da área interna, longe do movimento de quem não é morador da favela. Alí na boca pouca gente pára. Só quem é da trutagem, ou seja, pouca gente. Netinho só fazia a correria para eles, mas isso foi antes. Ele tinha planos de viver até depois dos 20 anos e pra isso foi vender nos trens da cidade, um mercado que crescia a cada dia. No entanto não deixou de fazer a correria discretamente, era um bom aviãzinho. E o pessoal do movimento gostava dele. Então, Neto, você viu que a quadra tá quase pronta? Mas não sei não.

_contos noturnos [5/10]

5. Viagem ao centro da terra Há diversas maneiras de isolar socialmente as pessoas, de estratificar socialmente a massa. Coca-cola ou baré-cola é um tipo de estratificação. Rádio ou televisão na sala de casa é outro. A escola que os filhos freqüentam e com que tênis freqüentam. Na verdade, tudo pode ser estratificação social. Até mesmo bic ou mont-blanc. Ou se você tem um carro ou pega ônibus. Em algumas cidades, usar trem ou metrô faz diferença. Em São Paulo, andar de trem, simplesmente: a linha que margeia o rio Pinheiros é para classe média, com trens sofisticados que tocam jazz para os passageiros e mantém o ar-condicionado ligado o tempo todo. E todas as portas funcionam. As outras linhas de trem da cidade são para a ralé, sem música ou qualquer outro conforto. E aí, Bundinha? Freio cumprimenta o amigo. Um tapa e um soco. Só nas mãos. Na estação Vila Olímpia da CPTM eles estão como se em casa. Não há os perigos que assombram as outras linhas de trens urbanos da cidade. Como a que

_contos noturnos [4/10]

4. No bar, com morte Era um lugar discreto, sem muita barulheira ou música alta. A cerveja sempre gelada e uns salgadinhos para comer. A pimenta era generosa no sabor e na ardência, pedia mais cerveja. As camisas de times de várzea do interior de SP (Bananais, São Carlos, Bauru, Araraquara, Itú, São Lourenço da Serra e outros) – inclusive a do time do bairro – davam ao bar um clima amistoso, de todas as torcidas. Depois das oito da noite a fumaça do churrasco tirava os bebedores de plantão de suas poltronas confortáveis e os levava às cadeiras de metal que se espalhavam pelo bar: o movimento começava a ficar bom, as mesas todas ocupadas, o falatório aumentava. Mulheres poucas apareciam, mas eram sempre pauta das conversas que somavam carros e futebol. Vez por outra um assunto sério em uma mesa mais isolada aparecia, mas ninguém percebia. Mas coisa rara. Era um lugar de descontração pura e besta, como a paulistada gosta: tem comida e cerveja gelada e nenhuma mulher para encher o saco. M

_contos noturnos [3/10]

3. Saída No galpão da Distribuidora Seta de Bebidas Ltda., à noitinha, há um movimento único: pessoas saindo, caminhões entrando. O portão é tomado pelo burburinho dos motores e o barulho dos empregados que saem aos tropeções para logo ganhar as ruas a caminho de casa, rumo ao descanso de colchões furados e comida fresca – a mesma da marmita de amanhã. Meia hora depois os funcionários de alto escalão – entenda-se todos aqueles que não têm trabalho braçal – saem, já com o caminho desobstruído, de volta para casa. Marcelo Mortica, gerente regional de vendas, um homem abastado, rico em adiposidades e poupança, costuma sair ainda mais tarde. Chegar cedo em casa significa ter que aturar a mulher por mais tempo. Aquela terça-feira foi normal até as 19 horas. Marcelo Mortica saiu do escritório acelerado. Parou no banheiro, no corredor. Voltou, pegou o café pré-trânsito na máquina da copa de seu andar e seguiu direto para o estacionamento. Os elevadores estavam vazios. No hall, apenas os segur

_contos noturnos [2/10]

2. Encontro de amigos O dia raiou cedo. Já fazia um tremendo sol às oito horas. Quando deu meio dia a favela era uma festa de roupas, lençóis, toalhas, panos de prato, camisas de times, tudo limpo e estendido nos varais improvisados que permeiam os becos; festa de crianças brincando na rua com a água suja que escorre pelas vielas; festa de barro vermelho, fumaça de fogões a lenha. Incêndios são comuns nas diversas favelas de São Paulo. E aí, Manivela! Fala, meu velho! Como é que 'cê tá? Manivela ganhou esse apelido ainda jovem. A mãe dele dizia que aquele era um morro de mulheres de coxas grossas. Afinal de contas, era um morro. E o manivela subia o morro atrás das garotas fazendo movimentos giratórios com a mão direita, como quem gira uma manivela, mesmo. Isso por todos os becos. E logo ficou conhecido como Manivela. Na miúda, Manivela, na miúda. Tem três que tão do lado de lá, no X. Eu tava junto, liga?! Mas aí, nem fico abalado, tá ligado? Vacilaram. E o que 'cê tá fazendo a

_contos noturnos [1/10]

1. O assalto São Paulo, após certa hora da noite, ganha outro tipo de vida. Talvez pelas sombras que insistem em permear a luminosidade amarelada das ruas, talvez pela altura dos prédios que ficam acima dos postes tampando o céu e criando longos cânions urbanos sem vida – e luz – natural. O ambiente adequado para outros tipos de vida. Às margens do rio Pinheiros muitos carros circulam sem parar. Um corredor viário que liga três regiões da cidade. A vida, às duas margens, ganha todo tipo de tons. Tons acinzentados de grandes complexos e ligações viárias, um labirinto monumental. Cores brilhantes de grandes prédios de diversas corporações nacionais e multinacionais que vêem na localização um privilégio e uma estratégia para se movimentar na cidade. Cores amarronzadas das diversas favelas que se espalham ao longo de todo o rio frente a frente – em margens opostas – com bairros ricos. Já passava das dez da noite. Fazia calor na cidade, muitos carros e poucas pessoas nas ruas. Continua anda