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Mostrando postagens de 2005

_a espada [conto - nova versão]

Eu saia da Rua Direita em um domingo que a cidade estava vazia. O centro é sempre melhor nos finais de semana. A vida passa e a gente consegue perceber. Há poucos casais passeando, alguns turistas conhecendos prédios históricos e suas histórias ou seguindo o roteiro gastronômico da cidade. Não me lembro bem porque estava lá, mas não era por nenhum destes motivos. Talvez um encontro. Não sei. Mas estava. Subi pela Praça da Sé até a João Mendes. Nenhum advogado circulava ali. Eu estava em outros pensamentos, ruminava algo, quando me deparei com a minha espada. Ela estava exposta em um antiquário ao lado de uma velha liraria de esquina que perdura à poluição. Não tive muita certeza, mas parecia a minha espada. Estava um pouco desgastada pelo tempo, com algum zinabre na bainha e escurecida em outros pontos. Seu fio não devia ser mais o mesmo, mas acho que nunca foi afiada a não ser quando foi realmente utilizada. Lembro-me a primeira vez que a vi. Havia um desfile cívico e a antiga guarda

_à francesa (ou "aos cegos") [poema]

olhei pro horizonte vi janela incerta olhei para as ruas vi árvores nuas olhei para o céu vi nuvens iguais olhei para o carros vi pessoas escondidas olhei para mim vi marcas mudas olhei para o rio vi sujeira infecta olhei para a mulher vi beleza crua olhei para a música vi palmas receosas olhei para a maca vi machucados oxigenados olhei para os anões vi pássaros enjaulados olhei para a guerra vi canhões feridos olhei para os líderes vi mártires calados *** ML, novembro, 2005

_possibilidades [poema]

"Ele faria da queda um paço de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro" (Fernando Sabino, in O encontro Marcado) pode ser que eu sinta pode ser de pronto talvez seja uma procura talvez um encontro pode ser que eu viva pode ser o fim talvez não seja a sorte talvez seja, para mim pode ser que eu acorde pode ser que eu esqueça talvez seja apenas o frio talvez, alguém que me aqueça pode ser uma dança pode ser talvez eu dance talvez, dance pode ser que eu finja pode ser que eu respeite talvez eu veja talvez eu seja pode ser apenas medo pode ser desejo talvez seja respeito talvez seja momento pode ser ilusão pode ser bonito talvez seja no chão talvez seja um mito pode ser real pode ser ruim talvez seja estampa talvez seja carmim pode ser uma flor pode ser cerveja talvez seja calor talvez seja cereja *** novembro de 2005

_o combate [conto]

Era uma trégua, um momento só nosso. Mas deles também, e isso incomodava. Estávamos todos lá, cansados, xingando a mãe deles, nos olhando, nos medindo em cada centímetro de medo. Pareciam muitos do outro lado, grandes e fortes, armados e protegidos; mas estávamos no mesmo número, tínhamos as mesmas armas e talvez parecêssemos em número maior do que realmente éramos. Apenas alguns que se feriram em quase uma hora incessante de combate ficaram mais afastados e foram substituídos; eles ainda estavam inteiros, e isso nos assustava. Seriam monstros vindos das estórias que assistíamos na tv? Acho que não, apenas nosso medo nos deixava vê-los tão grandes. Estávamos parados, do nosso lado, observando em silencio o silêncio de nossos adversários, tentando encontrar no sossego deles alguma resposta, achar naqueles olhos distantes uma tática surpreendente que iria nos derrubar rapidamente, nos deixar baixos e sem vontade de continuar. Precisávamos desarmar a surpresa. Ninguém do nosso lado era e

_ana beatriz [conto]

UM São Paulo, junho de 2004. Há muitos anos não fazia tanto frio na cidade como fez neste mês. O sol do fim do dia faz força para esticar-se preguiçoso até onde a vista alcança, ao longo de todo o rio, verdejando o gramado do jóquei-clube e amarelando a superfície irregular dos prédios soporíferos. Do lado de trás da Av. Rebouças há sombras, apenas. Sombras que esfriam mais a cada minuto morrido do dia. Dois homens se encontram em uma das salas de uma casa branca e grande. - Claro que lembro! Como esquecer?!?! Alguns pacientes extrapolam a aura que os limita a tal posição e ganham minha afeição. Sou um homem moderno, não nego: talvez isso seja considerado anti-ético. Mas veja, as relações humanas são baseadas no conhecimento, no entendimento, na conversa. E se sempre e com todos que vem aqui eu sou sempre ouvidos, nada mais natural que algumas destas pessoas se destaquem e me façam realmente chegar a sentir falta de nossas conversas. Fazia frio. Mesmo protegidos dentro na sala quente,

_loteria [conto]

Godofredo Monteiro Filho estava pobre, mas continuava a freqüentar o clube. Ali, desde há muito tempo, ele e os amigos – a maioria ainda ricos – se encontravam durante a semana para falar de mulheres, futebol, carros, essas coisas que os homens de antigamente gostam de conversar só entre eles, não por ser proibido, mas dá a impressão que pensam que as mulheres ficariam como eles se falassem as mesmas coisas com elas por perto. Era um encontro despojado, regado a uísque, charutos e cartas. Godofredo nunca participou daquela mesa. Achava um desperdício de dinheiro os tais "jogos de azar". Mas sempre foi lá, no clubinho; era quase inevitável, sentia uma forte atração por aquela vida. Isso, há dez anos, antes da abertura. O tal do "presidente almofadinha" quebrou ele, ou melhor, a empresa dele. Foi um homem rico, assim, como o termo exige: tinha mais dinheiro que todos os seus funcionários poderiam ganhar juntos em um ano de trabalho. Mas não por que explorava cada um