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_loteria [conto]


Godofredo Monteiro Filho estava pobre, mas continuava a freqüentar o clube. Ali, desde há muito tempo, ele e os amigos – a maioria ainda ricos – se encontravam durante a semana para falar de mulheres, futebol, carros, essas coisas que os homens de antigamente gostam de conversar só entre eles, não por ser proibido, mas dá a impressão que pensam que as mulheres ficariam como eles se falassem as mesmas coisas com elas por perto. Era um encontro despojado, regado a uísque, charutos e cartas. Godofredo nunca participou daquela mesa. Achava um desperdício de dinheiro os tais "jogos de azar". Mas sempre foi lá, no clubinho; era quase inevitável, sentia uma forte atração por aquela vida. Isso, há dez anos, antes da abertura. O tal do "presidente almofadinha" quebrou ele, ou melhor, a empresa dele. Foi um homem rico, assim, como o termo exige: tinha mais dinheiro que todos os seus funcionários poderiam ganhar juntos em um ano de trabalho. Mas não por que explorava cada um deles, não veja por este lado; ele sabia guardar cada centavo da labuta como poucos. Agora ia lá para continuar vivendo, quer dizer: não é um homem que se prende ao seu passado, que vive de lembranças, não é nada disso, não. Ele vai lá para vender loterias. Isso mesmo, continua indo ao clube para ganhar algum trocado, fazer um dinheirinho – bem menos do que ele ganhava com algumas horas na empresa – e continuar vivendo. Alguns amigos até fazem uma piada. Dizem quê, de tão mão-de-vaca que é, capaz refazer a fortuna vendendo esses bilhetes de loteria – "e às nossas custas", completava um ou outro. Mas era querido por todos, e por isso compravam.
Um dia estava ali para vender seu último jogo. Um cartão extenso, com umas trinta combinações diferentes. Mas era um azarão: desde que começara a vender seus "joguinhos", nunca conseguiu mais que um terno de poucos reais. Nem ficava mais com jogo nenhum para ele: não acreditava nestas porcarias. Quando chegou no clube, a maioria já estava lá, alguns espalhados pela saleta – sofás e poltronas em volta de uma mesa baixa, dessas de centro, mesmo - e outros na mesa de cartas. Comprimentou todos e começou a oferecer seu jogo. "É o último, gente... vai, pra acabar. O sorteio é amanhã", ofertou. Alguns deram com as mãos em gesto de descaso, outros nem olharam. Ele já tinha vendido bilhetes desse sorteio para quase todos os presentes. Ofereceu para alguns pessoalmente: "Arlindo, quer?", "Não, obrigado, Godô.", "E você, Plínio?". Todos recusaram o tal bilhete. Emirson estava ali, e ainda não havia comprado. Emirson é um grande troçador. Amigo de Godofredo, freqüentador do mesmo clube, porém muito mais jovem, por volta de seus 35 anos. É filho de um bem sucedido fabricante de "bolos de butiquim". Um homem tão apegado ao dinheiro quanto o próprio Godofredo, mas com outro estilo: gosta dos prazeres que se pode ter com dinheiro no bolso.
- Emir, vamos lá, você não vai tentar a sorte dessa vez?
- Godô, pára. Você não vende nem rifa premiada! – zombou ele. Não quero não.
Alguns riram, outros nem viram.
- Vamos lá, Emir, quem sabe esse não é seu bilhete da sorte? Tentar não custa nada.
- Comprando de você? – perguntou com ar irônico. Custa sim. E caro. Nunca ninguém aqui ganhou nem uma quadra jogada por você, Godofredo. Não compro é nunca mais – afirmou enquanto se levantava rindo, escrachado.
E acabou que Godofredo não vendeu mais aquele tal bilhete. Mas, valha-lhe um dia de sorte, era este: o bilhete em questão, recusado até o último instante, foi premiado no dia seguinte em 16 milhões. Quase morreu do coração quando conferiu o jogo. Não sabia o que fazer, ligou para as duas irmãs, contou a novidade; ligou aos amigos mais próximos, estava trasbordante, radiante de felicidade. No entanto, como é de se imaginar, dividiu somente a felicidade que sentiu. O dinheiro, nem cogitou. Ou melhor, pensou nas irmãs, mas concluiu rapidamente que ambas estavam "muito bem, obrigado". E sentiu-se honesto ao pensar isso. Não que ele tivesse a obrigação de ajudar alguém, mas elas eram sua única família, e família é família, diabos.
Resolveu que seu primeiro ato seria mudar-se para uma casa mais pomposo, mais adequada à sua nova situação: tinha dinheiro, precisava de uma casa que mostrasse isso. Ou melhor, que lhe proporcionasse essa sensação. Era mais para ele sentir que estava rico do que para ostentar. E, como era meio unha-de-fome...meio não, totalmente, a casa comprada não era lá grande coisa. Apenas um pouco melhor que a anterior. Nada mais fez em prol de si mesmo. Saber que tinha seu dinheiro era a melhor coisa que podia lhe acontecer: agora podia passar a velhice como sempre quis, sem se preocupar com muita coisa.
Passados alguns dias – ficou um pouco longe dos amigos, pois estava "resolvendo" algumas coisas –, voltou ao clube. Voltou triunfante, todo sorrisos, mais "parceiro" do que nunca. Não tinha novidades, além daquela que já não tinha mais qualidade de nova. Mas contou a todos, com um largo sorriso enfiado no Armani novo e uma belo copo de uísque com gelo. Ficou pouco tempo sem aparecer por ali, mas alguns tinham coisas para perguntar, muitas, que ele respondia com prazer. De repente, sentiu falta do Emirson. "Que diabos, cadê ele?", perguntou a si, enquanto o procurava com um sorriso de satisfação, ansioso por troçar o zombeteiro amigo.
- Você soube do Emirson, Godô? – veio alguém em seu auxílio. Tá internado. O pai o colocou no internato depois que o achou em casa todo sujo. Uma semana trancado, sem banho, sem comer direito, fumando e bebendo...dizem que foi depois que descobriu ter perdido o prêmio. É, vai entender...
Godofredo nem comentou. Seu espanto foi tal que não sentiu o mínimo ânimo de comentar. Murchou o sorriso, de cara no chão. Não foi embora, mas sua noite não foi lá das melhores. Outros ainda vieram comentar o acontecido, mas Godô não queria saber. Já estava arrasado o suficiente com a notícia. "Internado? Como pode um troço desses?" era a pergunta que repetia incessante para si mesmo. Realmente era difícil de compreender.

*
As coisas não mudaram muito daí por diante. Godofredo apenas deixou de freqüentar o clubinho com a mesma assiduidade de quando precisava vender seus bilhetes. Sempre que aparecia por lá, perguntava do amigo Emirson, e recebia as mesmas respostas: "Dizem que está um pouco melhor", mas nunca algo conclusivo. Um dia, dos últimos que deu as caras no clube, reclamou de uma certa dor "no baixo da barriga e nas costas. É, é PVC!"
- E isso é sério, Godô? Perguntou o garçom com quem conversava.
- Hum...é a porra da velhice chegando – respondeu após longo gole, sem rir da própria piada.
- Vá ver isso, homem. Você não tem mais idade para brincar com dor, não.
Foi esse o mesmo conselho que muitos amigos repetiram, mas sem esforço algum. E nem adiadiantaria: o velho parecia não querer gastar seu dinheiro com nada, não. Nem foi ao médico, nem fez plano de saúde, deixou lá, sem mexer. Tinha o suficiente em casa, e isso bastava. Gastar, nem pensar. E isso custou caro: acordou em um domingo de manhã muito fria, com uma dor tremenda. Tentou agüentar, mas não deu, resolveu chamar um táxi. O taxista era velho conhecido, e o ajudou a chegar ao hospital, "um público e bom", disse.
- Difícil, hein! – respondeu o motorista, olhando-o com um sorriso por cima do ombro direito.
Deixou-o na porta de um hospital público, "pois é só uma dor. Uma consultinha rápida e o Dr. me dá o remédio certo. E sem gastar muito!", disse alegre enquanto saia do carro, friccionando o polegar com o indicador. "Mas não precisa me esperar, não. Depois eu pego outro", continuou, apertando a lateral do tronco, a voz com uma expressão de dor. E esperou, como nunca, para ser atendido. À tarde, quando finalmente conseguiu, não gostou da cara do médico. Foi internado imediatamente. Dois médicos recém formados diagnosticaram câncer, "mas calma, pode ser que haja cura. Não se preocupe. Vamos fazer algumas pesquisas, uma biópsia, não se preocupe.", o informaram. Tentou explicar quem era, o dinheiro que tinha, mas não teve tempo, pois ambos deram-lhe as costas. Pediu a uma enfermeira para falar com as irmãs, mas esta negou, dizendo que não havia como levar-lhe um telefone. Explicou quem era. "Eu pago, me traga aqui um celular!", esbravejou.
- Mas se o Sr. é tão rico assim, o que está fazendo em um hospital público?
Não conseguiu se explicar, de nada adiantaram suas súplicas. E nem falar com as irmãs ou outro qualquer. Morreu horas depois, agonizando de dor em um hospital público, comido pelo câncer, sem poder, ao menos, tomar uma dose de morfina.

Fim

julho de 02

***

Comentários

Anônimo disse…
...so u think everyone have a godofredo inside theirselves?
maybe...
I saying, "cok-cok-cok, cluck-cluck-cluck"

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