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_a chuva [conto]


A chuva caía rala, molhando devagar as vagas plantas esquecidas no jardim. Lembrança. Anoto mentalmente: estou com saudades de alguém. Pela janela são visíveis as grades e os remédios de folhas largas já um pouco afogadas, esbranquiçadas pela água leve que insiste em entrar em minha memória.

Domingo à tarde. Estávamos nus sobre um colchão fino que permitia nos espalharmos para além de seus limites sem sentir a transição. O enorme avarandado do sítio era infestado de plantas. No ofurô, uma hora antes, começamos algo que talvez não soubéramos ainda como terminaria. Cozinhamos nosso sexo na grande bacia oriental; nossa mestre-zen do prazer a longo prazo, ela costumava dizer. Era fim de março e, estranhamente, pouco chovera. Na floresta do alheamento meus sonhos eram permeados por uma sensação breve de umidade e pelos seios moles e quentes dela sobre meu braço. As nuances de cheiros passaram de sol e calor a uma apreensão da natureza, premeditação de chuva em abundância. Nos levantamos e, ainda nus, fomos para o gramado sentir a água suave nos encharcar. Ficamos molhados da paixão. Na lisura da água nossos corpos se atracaram indóceis e urgentes. Foi a última vez que nos vimos.

No silêncio ruidoso da chuva alguns bichos dão sinal de alegria. A grama, crescida e descuidada, dança trêmula e súbita em curtos passos sorridos. Anoto mentalmente: não sei muito bem de quem.

Nos conhecemos em uma festa na casa de um amigo comum. Eu morava no sítio já nessa época, e o hábito provincianos de não se preocupar com a aparência começava a dar sinais de vida sobre meu corpo: nas roupas amarrotadas, nos cabelos e barba por fazer, na botina de couro um pouco suja de terra. Ela viera da cidade. Usava uma vestido preto e curto, de alças finas. Os ombros. Calçava uma plataforma preta alta da amarrar na canela. Lembrei de meu all-star azul e por um segundo estive em outro lugar, longe demais dali. Alguns anéis e um colar enorme, brilhante; ela não usava brincos. Nem calcinha.

O vento sopra a chuva e, como se álcool no fogo, a leveza da queda se transforma em uma turbulência, em uma agressão ao equilíbrio e aos sons. Minha nuca se arrepia e olho, forçosamente, pela janela que insiste em iluminar o quarto. Sobre a mesa ainda está um cigarro acesso. Anoto mais uma vez: ando sozinho ultimamente.

O carro dela tinha pouco espaço. Acabamos indo para meu jipe de capotas invisíveis. Ela me pediu para ser carinhoso. Eu fui. Nosso calor não podia embaçar os vidros. Choveu nessa noite. Ninguém nos incomodou. Os cabelos negros perderam os cachos e grudaram nas costas dela, ao longo do rosto, na pele morena que a noite deixara negra. Em meus ombros. Os olhos verdes se perdiam na escuridão das órbitas cerradas. Coxas sobre coxas, os seios, então firmes, davam tapas em minha cara, acariciavam minha face. Molhados. Fomos sedentos desde o começo.

Apago o cigarro. Tiro minha roupa e vou para o ofurô. Passo direto e decido pelo vento e pela chuva. Está frio. Os cachorros do sítio estão se divertindo na água. Eu os chamo, eles não vêm. Em pé, sozinho no meio do mundo, me entrego à extravagância do sexo solitário. Anoto sem culpa: vou pensar nela.

Brigamos a primeira vez. Ela morava comigo há mais de seis meses. Não lembro muito bem por quê brigáramos. Ela queria dormir e eu assistia a um filme bobo na televisão. Voltei da cozinha com dois copos de leite com achocolatado. Eu não devia tê-la acordado. A cama ficou suja do conteúdo dos copos. Tivemos que dormir na sala. Já em paz. Nesse dia, a chuva ficou dentro de casa.

O primeiro grilo da noite me tirou de meu torpor. O calor do ofurô e a moleza que se fez em meu corpo me embriagaram ao ponto de quase sono. A água já não estava mais tão quente, mas ainda agradável. Eu precisava ver algumas fotos. Anoto mentalmente: vou telefonar para ela.
Nunca mais brigamos. A gravidez a deixara nervosa e ela não sabia como me contar. Eu tinha 36 anos. Ela, eu nunca sabia ao certo. Mas cronologicamente beirava os 25. Minha felicidade a incomodou. Nunca pensei em ser pai. Ela não queria ser mãe. Eu estava feliz. Ela estava tendo um caso. Nosso filho não nasceu.

Chuva ainda caía rala. Mas o jardim já havia sido engolido pela noite. Provavelmente ainda estava lá, sendo molhado devagar. Eu sei porque ela se foi. Ela não sabe porque resolveu ir embora. Talvez a nossa única paixão tenha sido o sexo. Talvez nossa única paixão tenha sido nossa embriaguez constante de amor (andávamos nus pela casa o dia todo). Adormecerei aqui nessa cadeira, em frente à televisão, depois irei para a cama pelo meio da madrugada tropeçando nos móveis e parando para ver as fotos no aparador do corredor, assim como fiz ontem. Anoto, pela última vez: acho que também vou embora.


***

ML

Comentários

Anônimo disse…
Poxa que triste. E lindo. E contudente.
Anônimo disse…
muito triste. gostaria de saber quem ela é.
Kizzy Ysatis disse…
Obrigado pelo toque, vou verificar.

Abraços
kizzy ysatis

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