8. Memorial
Porra, aquilo é bom demais. Sempre comi muito daquilo. Minha mãe dá um nome que eu acho feio, mas é esse o nome. Eu comia com meu primo quando era pequeno. Antes de ele se dar bem. Agora a gente se vê pouco, ele virou granfa, se mete com política e tudo. Mas vem da mesma manjedoura que eu: era pobre de marre. Lá em Serra Bonita a gente aprontava todas. E mais algumas. Um dia a Telesp colocou uma torre de celular lá. Dessas de retransmissão. A gente ia nadar na mesma lagoa todos os verões, e no caminho a gente passava pela torre. Foi a primeira caganeira que tive. Meu primo falou (ele era mais velho, a turma toda o obedecia. Eu mais que os outros) "hoje à noite a gente vem aqui, ó" e apontou para a torre. Era pra subir no mais alto e ver a cidade lá de cima. Deu medo na mesma hora, antes mesmo de pisar no ferro da escada. Nadamos, voltamos à tardezinha. Oito horas ele saiu da casa dele e eu vi. Me escondi debaixo da cama. Cadê o Pedro, Tia Creuza? Não sei, não. Deve de ta lá no quarto, dormindo; deixa ele lá. Ah, tia, vou lá ver; a gente vai brincar de polícia e ladrão na cidade toda, hoje; que cheiro é esse tia? A senhor fez minha gororoba? Sim. Come lá na cozinha; o Pedro já comeu. Ouvi os passos indo pra longe. Me aliviou um pouco. Depois as panelas batendo. E então ele chegando, os pés parados ao lado da cama, tudo escuro. A cara cheia de espinhas se botou na frente da minha, é estranho ver as pessoas na horizontal, já puxando meu braço para fora. Vamo, Pedro; sozinho eu não vou. Eu olhei pra ele sem saber o que fazer. Calcei minhas havaianas e fomos. Era uma caminhada de uns 20 minutos até a torre, numa estrada de terra do outro lado da rodovia. O lugar, à noite, era sombrio: árvores dos dois lados da estrada sem ilumição me faziam ter medo de levantar a cabeça. Chegamos, ele disse. Vamos entrar por ali. Eu o segui. Ladeamos a cerca de alambrado até achar um ponto seguro para poder pular. Passamos por trás da casa do caseiro da torre fazendo o maior silêncio possível. Minha barriga de mexia sozinha. Vai você primeiro, eu te seguro, qualquer coisa. O ferro da escada era gelado, segurei firme, olhei o túnel vertical que me esperava, e fui. Meu primo veio logo atrás de mim. Meu coração batia como marteladas em uma bigorna. Eu não ouvia mais nada além de meu pulso. Subimos devagar, ofegando baixo. E nunca mais me esqueci do que vi: até onde a vista alcaçava havia montanhas e mais montanhas para todo lado. Como o mundo se tornou grande para mim. Do lado esquerdo dava para ver a luz da cidade grande como um borrão que apagava as estrelas. Na direita era uma escuridão de estrelas que iam até depois da serra. Eu ria e meu primo me olhava rindo também. Vamos balançar, ele disse. E balançamos. Até que a torre começou a fazer barulho. Nhec-nhec. E não parava mais de balançar. Fiquei com medo. E minha barriga começou a se mexer sozinha de novo. Ouvimos uma voz, lá longe, um grito que o vento não nos deixava entender. Era o caseiro esbravejando com a gente. Fodeu, Pedro; vamos descer e correr, cada um por um lado. Ele saiu da escada e foi para o outro lado. E desci pela escada, com pressa e medo. O caseiro estava chegando perto. Quando cheguei no chão ele me esperava com os braços furiosos e a cara me condenando. O que você ta fazendo, muleque? Vem aqui. Quem é sua mãe? Meu primo havia sumido. Ouvi o barulho da cerca sendo pulada. Era ele. Me dei mal. Em casa, tomei uma surra de minha mão. E Dona Creuza não batia a esmo não: era soco na boca do estômago, mesmo. Ela só parou de me bater depois que matei meu primo.
Cacete, Manivela, que porra é essa? Vamo, vamo.
***
continua
ml
Porra, aquilo é bom demais. Sempre comi muito daquilo. Minha mãe dá um nome que eu acho feio, mas é esse o nome. Eu comia com meu primo quando era pequeno. Antes de ele se dar bem. Agora a gente se vê pouco, ele virou granfa, se mete com política e tudo. Mas vem da mesma manjedoura que eu: era pobre de marre. Lá em Serra Bonita a gente aprontava todas. E mais algumas. Um dia a Telesp colocou uma torre de celular lá. Dessas de retransmissão. A gente ia nadar na mesma lagoa todos os verões, e no caminho a gente passava pela torre. Foi a primeira caganeira que tive. Meu primo falou (ele era mais velho, a turma toda o obedecia. Eu mais que os outros) "hoje à noite a gente vem aqui, ó" e apontou para a torre. Era pra subir no mais alto e ver a cidade lá de cima. Deu medo na mesma hora, antes mesmo de pisar no ferro da escada. Nadamos, voltamos à tardezinha. Oito horas ele saiu da casa dele e eu vi. Me escondi debaixo da cama. Cadê o Pedro, Tia Creuza? Não sei, não. Deve de ta lá no quarto, dormindo; deixa ele lá. Ah, tia, vou lá ver; a gente vai brincar de polícia e ladrão na cidade toda, hoje; que cheiro é esse tia? A senhor fez minha gororoba? Sim. Come lá na cozinha; o Pedro já comeu. Ouvi os passos indo pra longe. Me aliviou um pouco. Depois as panelas batendo. E então ele chegando, os pés parados ao lado da cama, tudo escuro. A cara cheia de espinhas se botou na frente da minha, é estranho ver as pessoas na horizontal, já puxando meu braço para fora. Vamo, Pedro; sozinho eu não vou. Eu olhei pra ele sem saber o que fazer. Calcei minhas havaianas e fomos. Era uma caminhada de uns 20 minutos até a torre, numa estrada de terra do outro lado da rodovia. O lugar, à noite, era sombrio: árvores dos dois lados da estrada sem ilumição me faziam ter medo de levantar a cabeça. Chegamos, ele disse. Vamos entrar por ali. Eu o segui. Ladeamos a cerca de alambrado até achar um ponto seguro para poder pular. Passamos por trás da casa do caseiro da torre fazendo o maior silêncio possível. Minha barriga de mexia sozinha. Vai você primeiro, eu te seguro, qualquer coisa. O ferro da escada era gelado, segurei firme, olhei o túnel vertical que me esperava, e fui. Meu primo veio logo atrás de mim. Meu coração batia como marteladas em uma bigorna. Eu não ouvia mais nada além de meu pulso. Subimos devagar, ofegando baixo. E nunca mais me esqueci do que vi: até onde a vista alcaçava havia montanhas e mais montanhas para todo lado. Como o mundo se tornou grande para mim. Do lado esquerdo dava para ver a luz da cidade grande como um borrão que apagava as estrelas. Na direita era uma escuridão de estrelas que iam até depois da serra. Eu ria e meu primo me olhava rindo também. Vamos balançar, ele disse. E balançamos. Até que a torre começou a fazer barulho. Nhec-nhec. E não parava mais de balançar. Fiquei com medo. E minha barriga começou a se mexer sozinha de novo. Ouvimos uma voz, lá longe, um grito que o vento não nos deixava entender. Era o caseiro esbravejando com a gente. Fodeu, Pedro; vamos descer e correr, cada um por um lado. Ele saiu da escada e foi para o outro lado. E desci pela escada, com pressa e medo. O caseiro estava chegando perto. Quando cheguei no chão ele me esperava com os braços furiosos e a cara me condenando. O que você ta fazendo, muleque? Vem aqui. Quem é sua mãe? Meu primo havia sumido. Ouvi o barulho da cerca sendo pulada. Era ele. Me dei mal. Em casa, tomei uma surra de minha mão. E Dona Creuza não batia a esmo não: era soco na boca do estômago, mesmo. Ela só parou de me bater depois que matei meu primo.
Cacete, Manivela, que porra é essa? Vamo, vamo.
***
continua
ml
Comentários
adorei este texto, não sou menino mas já subi em muitas torres(). Sabe,essa história de estômago que se mexe sozinho, o meu está fazendo isso agora. Acabei de ganhar o dia...com link lá do meu boggler. Você é o cara mais perfeito que conheço, e o mais engraçado, seu rosto eu nunca vi.
Providências serão tomadas.
Obrigada.
Hoje, não paro de sorrir.
Muito bom seu texto, continuarei leitor deste.
Até mais!
Ah, bom mundial e que ganho o melhor!!
deixo a minha página pessoal
http://neurobiologiadaexcelencia.blogspot.com/