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_ana beatriz [conto]

UM

São Paulo, junho de 2004. Há muitos anos não fazia tanto frio na cidade como fez neste mês. O sol do fim do dia faz força para esticar-se preguiçoso até onde a vista alcança, ao longo de todo o rio, verdejando o gramado do jóquei-clube e amarelando a superfície irregular dos prédios soporíferos. Do lado de trás da Av. Rebouças há sombras, apenas. Sombras que esfriam mais a cada minuto morrido do dia. Dois homens se encontram em uma das salas de uma casa branca e grande.
- Claro que lembro! Como esquecer?!?! Alguns pacientes extrapolam a aura que os limita a tal posição e ganham minha afeição. Sou um homem moderno, não nego: talvez isso seja considerado anti-ético. Mas veja, as relações humanas são baseadas no conhecimento, no entendimento, na conversa. E se sempre e com todos que vem aqui eu sou sempre ouvidos, nada mais natural que algumas destas pessoas se destaquem e me façam realmente chegar a sentir falta de nossas conversas.
Fazia frio. Mesmo protegidos dentro na sala quente, ambos estavam agasalhados. O psicanalista falava com ares de cotidiano. Na sua voz nada soava estranho.
- Fico contente que assim seja. Estava apreensivo se deveria realmente vir visitá-lo - disse o jornalista alegremente, ainda de luvas e cachecol.
- Claro - respondeu sem surpresa o psicanalista, estendendo as mãos e pedindo os acessórios de inverno que o outro começava a tirar. Eu, afinal de contas, continuo sendo psicanalista, e o psicanalista que te ouviu durante dois anos. Isso mostra como, mesmo sendo moderno, não permito que minhas relações profissionais caiam em amadorismos que poderiam manchar minha reputação - ele pôs os olhos fundos no opaco olhar do jornalista. Isso Sempre esteve claro em minha mente e, sem querer ser chato, se você ainda fosse meu paciente - pausou - não ouviria isso de mim, disse voltando a sentar e apontando a cadeira de fronte a sua mesa. Quero dizer: espero que essa visita não seja um retorno atrasado - e encostou-se em sua própria cadeira apoiando os braços.
- Oh, não, não - voltou o jornalista com um aceno de mão. Longe de mim. E, pelo dito, o sr. deve se lembrar, acho que nunca precisei de terapia, muito menos de análise. Mas, jovem e pernóstico, devo ter exagerado - olhou o psicanalista de relance para ver sua reação. Lembra do que meus pais diziam? "Esse garoto precisa é de um psicanalista que abra a cabeça dele!", bradava meu pai com o punho libertador se movendo no ar. Eu jurava que ele ia me mandar para um neuro. Acabei no psicanalista. Não ria.
O frio não os impedia de ter as faces rosadas. O psicanalista metido em um terno de linhas retas e cinzas, envelhecera nos últimos anos. Já o homem a sua frente se tornou um jornalista e isso psicanalista não sabia definir claramente se era melhor ou pior que envelhecer.
- Como não rir, meu caro? Seu senso de humor não mudou nada - havia ironia nas palavras do psicanalista? Mas diga de uma vez o que o trouxe aqui.
O jornalista o mediu por um instante, escolhendo as palavras e a melhor maneira de dizê-las.
- Minha visita, na verdade, é por causa de uma de suas pacientes - disse ele hesitando um pouco. O psicanalista não pareceu surpreso.
- Hum. Uma namorada? Não sei se poderei ajudar muito. Você me entende, claro, não posso falar sobre o que ouço aqui dentro - voltou ele naturalmente.
- Eu com certeza pediria isso, mas não é o caso desta vez.
O tom de gracejo estava novamente acentuado.
- Vamos lá, me diga, então, que mistério se esconde nessa massa cinzenta?
Muito benevolente para seu próprio gosto, o psicanalista conteve os gestos e fechou um pouco o cenho. Queria deixar o rapaz à vontade e sentiu que começava a exagerar.
- Um assassinato. Foi encontrado o corpo de uma garota, morta há três dias, em um terreno baldio no fim da Rua Sumidouro, próximo à marginal do rio Pinheiros. Ela era sua paciente.
- Sei onde fica o lugar. Qual o nome da garota?
- Ana Beatriz de alguma coisa.
O psicanalista pousou os cotovelos sobre a mesa e os dentes no dedão esticado, desviou o olhar do jornalista e procurou o chão.
- Sim, talvez seja minha paciente, sim. Não tem o sobrenome?
- Não.
- Quando foi o crime?
O jornalista voltou com gravidade.
- Cinco.
- Não é muito tempo para uma pessoa ficar sumida? Ninguém deu falta?
- Me parece que ela causava problemas em casa, segundo o depoimento da família. Isso você pode me informar - disse e olhou novamente o psicanalista pausadamente antes de continuar. A família ainda a esperava voltar para casa quando recebeu a notícia da morte. Não era normal que ela sumisse, segundo os pais, mas esperavam isso dela uma hora ou outra; com amigas ou com algum garoto - ultimamente arrumava um namorado diferente por semana.
Ainda não havia surpresa no psicanalista, o que começou a surpreender o jornalista.
- Ela era uma garota "namoradeira" - arrematou o psicanalista.
- É o que parece. A polícia levou nas coxas ao ouvir o relato da família: a falta de apreensão - a mãe inclusive disse que estavam ali apenas para acalmar a avó -, as despreocupações, as atitudes relapsas. Por essas coisas não levou a sério o pedido de busca. Para o perfil da garota, o sumiço é quase de praxe.
- Sim - disse e levantou a cabeça. E a encontraram pelo cheiro?
- Sim, pelo cheiro - olhou o jornalista sem surpresa.
- O homem de nosso tempo se perde em seus instintos, meu caro, e eles sempre prevalecem. O psicanalista levantou antes de continuar. Uma pena estar morta. Teríamos uma seção hoje e a estava aguardando com alguns apontamentos e caminhos para a nossa conversa. Muito me surpreende o assassinato. O que a polícia diz?
- Ainda nada.
- Eu fico surpreso. Uma garota calma e incompreendida, como ela costumava se definir, não merece tal fim - voltou a sentar e, se passando por prático, continuou: Mas ainda não entendi muito bem em que posso lhe ser útil.
- Sobre o que falavam nas seções? O jornalista foi seco.
- Meu caro, ainda ouço o estampido do tiro - o psicanalista apontava com o indicador para o teto, como se pedisse atenção para o som, fez cara de dor. Não seja tão direto. O homem prático não sonha e não deseja além do resultado imediato. O que você precisa não posso dar. As perguntas que você tem não dizem respeito ao seu amigo, mas sim ao psicanalista. E, como você deve saber, eu e ela falávamos sobre ela e seus problemas. Não era assim com você?
- Doutor, me ouça: não vejo surpresa em suas palavras e seus gestos. Você não parece desconcertado! Levantou-se enquanto falava. Quem era Ana Beatriz? Não sentou.
- Entenda - o psicanalista encostou na cadeira cruzando os braços - que a garota nada tinha comigo e me via como um chato que era obrigada a aturar. Os pais, "sempre os pais", como ela dizia. Desculpe-me, meu caro - e se levantou em direção a porta -, mas tenho um paciente na sala de espera. Ele marcou hora. Se quiser, podemos falar sobre isso outro dia - disse, olhando o jornalista nos olhos como não olhara até então.



DOIS

- Como vai, meu caro? Pensei que não voltaria a me ver depois de nossa última improdutiva conversa - disse com escárnio.
- Não era realmente minha intenção. Mas nada que eu faça aponta as informações que você pode me dar - retrucou com humildade.
- Amizades à parte, você pede demais. Prefiro seu silêncio - o psicanalista continuava pedante. Você sabe que pedir favores é algo terrível? É como a intimidade que, com o tempo, gera apenas desrespeito. Quem não gosta de fazer favores não os devia pedir.
- Eu lhe pedi algum favor?
- Não meu caro. Ainda não - o psicanalista se dirigiu à mesa para pegar seus utensílios de fumante.
O jornalista puxou a cadeira próxima ao divã e sentou-se, esperando a reação do psicanalista. O psicanalista passou por ele e sentou-se à sua frente, apoiando os cotovelos nas pernas e juntando as mãos. Levantou a cabeça e sorriu indulgentemente.
- O que há?
- A polícia chegou a um suspeito. Vim apenas dizer-lhe isso.
O psicanalista levantou calmamente e se dirigiu à sua mesa. Sentou de forma que pudesse observar o jornalista e o movimento da rua. Acendeu um cigarro e pegou um graveto que estava sobre a mesa.
- Ótimo! Já não era sem tempo. E o que ela conseguiu sobre este suspeito? - falou sem olhar na direção do jornalista.
- Na verdade, não muita coisa - começou sem entusiasmo. No dia do crime dois seguranças da guarita que fica em frente ao terreno em que foi encontrado o corpo viram um homem sair dali com muita pressa, olhando para trás e ao redor. Ele andava rápido e estava com pressa para atravessar a rua. Não deram muita atenção na hora, sempre dormem mendigos nestes terrenos vazios - pausou a fala. Apenas ontem, depois de ler minha nota no jornal, um dos seguranças juntou os dados e percebeu que o homem apressado que ele vira talvez seja o assassino. O fato estranho que o fez guardar a cena foi exatamente que os mendigos nunca saem dali no meio da noite, disse. Na hora em que deram conta das coincidências foram até o terreno e, para surpresa geral, não havia um homem sequer dormindo lá. A polícia interrogou os dois seguranças ontem mesmo, na parte da tarde, e conseguiu pouca coisa. Mas agora têm um homem em vista: negro, cabelos compridos e grudados como cordas, barba grande, alto e corcunda. No dia do crime, segundo a descrição dada, o suspeito usava apenas uma calça rasgada, uma blusa, um saco grande e estava descalço. E, ainda segundo os seguranças, vira e o suspeito aparecia por ali à luz do dia, sempre ao fim da tarde, procurando bitucas de cigarros no ponto de ônibus e esperando o lixo do restaurante da esquina. Em seguida ele ia para o terreno do crime dormis. Logo cedo era visto saindo dali, já procurando cigarro. Às vezes tinha uma garrafa de bebida, noutras um pote plástico com comida dentro. Mas sempre o mesmo, sem dúvida, segundo eles.
- Sem dúvida uma figura comum. O que mais a polícia tem sobre o crime?
O psicanalista brincava com o graveto entre os dedos. Foi até sua mesa apagar o cigarro.
- Que eu também saiba, nada. Fizeram poucos exames e tudo nas coxas, mas ouvi na DP comentários sobre a virgindade da garota até o estupro.
- Ou seja, ela foi estuprada e então assassinada - disse olhando para o jornalista.
- Não. Nos laudos que tive acesso consta o contrário: primeiro o assassinato, depois o sexo. Havia apenas sêmen em sua vagina, nada de secreção vaginal.
- Há casos de estupradores que preferem suas vítimas mortas. Alguns teorizaram relacionando isso à facilidade que proporciona para o estuprador: sem gritos, sem barulho, sem necessidade de força. Mas há relatos que criaram a classificação da "morbidez sexual". Homens que gostam de transar com as pessoas que assassinam. O assassinato em si os excita, a morte os excita. Você chegou a ver o corpo da garota?
- Infelizmente não. Por quê?
- Gostaria de saber se ela foi muito violentada ou se a morte foi rápida. Há tipos que se contentam com o corpo morto e há tipos mais metódicos, que precisam ver o corpo machucado, que gostam da violência, de provocar dor, de ver a dor nos olhos da vítima. O que mais?
- Vai depender do que eu publicar no jornal. E o que vou publicar depende do que você vai me contar.



TRÊS

Dois dias depois o jornalista voltou. Nos olhos do psicanalista, nada de novo, apenas a mesma vontade de não falar. O jornalista entrou e se cumprimentaram com um curto aceno de cabeça. O que entrava estava apreensivo, o outro, observador, olhos nos olhos. Samurais inimigos. O jornalista se dirigiu para o divã e deitou-se, aguardando. O psicanalista abandonou seu bloco de notas e a caneta sobre a mesa pesada ao canto da sala. Pegou um maço de cigarros dentro da gaveta, foi até a cadeira próxima ao divã. Sentou-se e, após ajeitar metodicamente o maço, o cinzeiro e o isqueiro, falou.
- Ela não dizia se sentir isolada de tudo e de todos, meu caro. Essa era sua grande frustração, eu sei disso. E, claro, não assumiu jamais que tivesse a vontade dela, que a maior parte de seu isolamento estava nas atitudes que tomava com todos. Um dia eu havia programado nossa seção para falarmos de uma amiga que ela tinha certa dificuldade em descrever, em dar mais informações que uma situação. Chegou ao consultório leve e despreocupada. Ela ficou tensa o tempo todo esse dia, depois que toquei no assunto. Ela era rápida e captou, antes do tempo, onde eu queria chegar com minhas insinuações e os caminhos que tomava nossa conversa - levantou-se e caminhou em direção ao centro da sala. Essa amiga, depois de muito insistir vim a descobrir, não existia - continuou enquanto caminhava pela sala. E com a falta de imaginação característica da juventude, ela não podia me dar mais dados. Você entende? Não havia amiga nenhuma, assim como não haviam problemas. Depois de três semanas ela apareceu aqui alegando que estava muito ocupada e por isso não pode vir às seções anteriores. Foi a primeira vez em dois anos que não veio me ver durante uma semana inteira. Depois disso nossas seções se tornaram cada vez mais insípidas - se dirigiu à estante, olhou os títulos e voltou-se para a mesa, onde sentou-se. Ela passou e deixar de responder minhas perguntas diretamente, apenas falava o que queria sem se preocupar com as idéias que formava. Às vezes fumava maconha antes de vir para o consultório, acredito, e divagava por uma hora e meia sem ao menos se dar conta que eu estava aqui a ouvindo. Nestas seções ela parecia mais calma, mais leve, falava de amor e do mar, dos livros que lia. Meu caro, Ana Beatriz era uma garota bela ao seu jeito. Se vestia tão mal quanto as outras garotas de sua idade, pintava as unhas de preto e gostava de roupas pretas. Sua pele branca contrastava com isso. Se somado ao negro de seus cabelos e ao azul de seus olhos, temos uma cena bizarra. Mas ela era muito bela, mesmo assim. Talvez, ao amadurecer, ganhasse elegância. No entanto ela dizia odiar toda essa canalhice de pessoas velhas que se preocupam demais com a aparência de quem vem no seu caminho. "Jamais serei uma dessas pessoas", disse mais de uma vez. "Não quero ser como meus pais: ricos, bem vestidos, bem comidos, arrogantes e fascistas. Prefiro os neozelandeses de terno, gravata e dreadlocks gigantes e parafinados". Ela não se permitia sonhar prolixamente quando não estava sob o torpor da maconha ou de cervejas que bebia com as amigas antes das seções, e percebi então que, no fundo, ela se preocupava muito com a imagem dela. Veja, caro, como todo exagero esconde e reflete um arquétipo perfeitamente inteligível: ao desprezar a preocupação com a aparência ela assumiu que tinha vergonha de si e, para não se destacar, se escondeu em negro. Isso reflete suas angústias mais íntimas e femininas: a mulher desprezada, a mulher não desejada, a mulher fora do padrão "cabide-de-passarela". Ela jamais percebeu que entregava mais de sua personalidade ao falar descabidamente de assuntos que não eram propostos. No entanto eu tinha em mãos uma colcha-de-retalhos - pegou o graveto sobre a mesa que estava sentado. Às vezes ela via um namorado antes de vir para cá e deitar neste divã em que você se encontra. E as reações eram adversas depois destes encontros: horas inteiras falando de raiva incontida ou de sexo. Ela era uma garota muito sensual, meu caro, mas tinha certa dificuldade em falar sobre isso. No começo ela se limitava a dizer que gostava de transar no escuro, mas alguns namorados seus não. E isso causava brigas, se agrediam mesmo. Mais uma vez seu corpo era o castigo, a injúria: se esconder no escuro era uma maneira de ter prazer sem se expor, e o exagero, as atitudes drásticas refletiam a rejeição a si mesma. Primeiro imaginei um distúrbio de personalidades múltiplas. Muitos arquétipos. A cada seção surgia uma nova história, amigos invisíveis, inexistentes. No entanto não era necessário cercá-la. Sempre que questionada ela voltava a ser a mesma garota frágil e medrosa de sempre. E o sexo passou a se tornar mais constante em nossas conversas. Aos poucos ela se mostrou libidinosa, extremamente apegada ao sexo. No entanto sempre no escuro. As seções passaram de medos sociais, culturais e morais a contos eróticos. Descrições de penetrações lentas e intensas, namorados avantajados que batiam na cara dela durante o sexo. Nestas seções ela chegava a ficar excitada - disse olhando o graveto em sua mão. Não comentava no começo. Há alguns meses ela chegou aqui transtornada: havia terminado um namoro, foi traída. E disse que se vingaria. O namorado, depois de uma transa, disse a ela que não queria mais. Que ela era muito louca, mas não sabia fazer sexo, que a amiga dela era melhor. "Isso me excitou", ela disse. "Estou louca para transar agora mesmo, só de pensar nisso". Duas semanas depois ela chegou aqui leve, em silêncio. Foi uma de nossas seções com menos eloqüência durante todo os meses que conversamos - acendeu um cigarro. Ela falou de planos e vontades para o futuro, o que era uma novidade. Com a mesma leveza ela disse que havia reatado com o namorado. E o estava traindo com a amiga que ele transara. "Realmente ela é um espetáculo, bem melhor que ele", concluiu com um sorriso jovial. "Ele já era". Mas, e não quero negar tudo o que disse, não consigo ver motivos para assassinarem uma garota como ela.



QUATRO

- A polícia esteve aqui.
- E o que disseram?
- Fizeram perguntas de praxe: o tempo do tratamento, como ela era, o que dizia, essas coisas. O que estava ao meu alcance, respondi. Você citou meu nome no jornal?
- Sim. Você leu?
- Não. Tenho meu jornalista particular para acompanhar o caso - os olhos irônicos alcançaram o jornalista despreparado. Um dos policiais citou seu nome, acredito que com algum rancor, durante nossa entrevista. Pelo menos não pediram para eu comparecer à DP. Por enquanto.
- O que disseram de mim?
O jornalista não se agradou em saber que falavam dele pelas costas.
- Algo a respeito de não trocar informações, não prestei muita atenção. Dou atenção ao que me interessa - voltou o psicanalista.
- Este caso parece lhe causar mais interesse do que você gostaria de deixar transparecer. Por que está me provocando?
- Você sabe que, apesar de tudo, ela era uma garota bela? Ela mesma não sabia disso. A família dela não sabia disso. Ou sabia e encontrou na agressão ao seu estilo, na ofensa, uma maneira de controlar a pseudo-independência da caçula. Pseudo porque ela dependia financeiramente dos pais - e eles, ao que me consta, negociavam na base da troca até as calcinhas que ela queria comprar. Trocavam por "obediência-empreitada", como ela disse algumas vezes. "Primeiro eu obedeço, depois tenho a recompensa", se explicava. "Otários", arrematava. Quando queria algo que não podia pedir para eles, pedia outra coisa de valor parecido que uma de suas amigas quisesse. E trocava com elas. Aprendeu rápido, não?
- A família disse à polícia que ela tinha tudo o que queria.
O psicanalista olhou para o outro rapidamente, sem aviso, como quem quer entrar no pensamento escondido por trás do que dissera. Acendeu um cigarro.
- Sim. Desde que eles concordassem com isso - voltou calmamente. Porque a polícia acredita que ela morreu virgem?
O jornalista o olhou com silêncio.
- Eu não disse isso. Apenas ouvi comentários extra-oficiais dentro da delegacia.
- Muito bem. Ela não era, nunca foi. Ela transava com todo mundo. Até com as amigas. Nunca negou. A única coisa que a dava prazer era o sexo. E sexo violento. Sempre havia marcas em seus braços, no rosto. De unhadas, de tapas, mordidas, apertões. De chicotes. Ela recendia a álcool e sexo em muitas de nossas sessões. Deve ter perdido a virgindade no dedo do médico que fez o parto dela.
A explosão violenta espantou o jornalista. O psicanalista estava excitado, verborrágico, presa fácil de si mesmo. Apagou o cigarro e pegou o graveto sobre a mesa.
- Era assim que ela falava com você? Perguntou o jornalista se fazendo raivoso.
- Não, ela não falava comigo assim. Ela não falava comigo, seu imbecil. Ela falava com as paredes, com as amigas imaginárias, com os móveis, com os cigarros - respondeu o outro com raiva também.
- Você era o criado mudo dela, então - voltou o jornalista com mais raiva.
- Não, seu estúpido, eu era apenas a vazão. Era como um consolo com ouvidos e sem boca, o depósito de todo o lixo sexual da mente infame daquela garota. "Adoro ser espancada enquanto gozo" ou "Minhas costas estão ardendo de tanto que apanhei hoje antes de vir para cá" ou "Minha boceta está tão fodida que mal consigo andar". Ela transava com mendigos fedidos - disse levantando-se e apontando com o graveto para o jornalista!
Ambos ficaram em silêncio, se olhando. O psicanalista quase ofegava.
- Você tem noção do que está me dizendo?
- Vai embora agora - gritou o psicanalista, ainda de pé, apontando para a porta.



CINCO

- Encontraram o assassino.
O psicanalista olhou para a porta, espantado com a intrusão e indiferente a informação. Havia um paciente na sala. Este aquiesceu relutante, e saiu. Pegou o telefone e chamou a secretária.
- Porque não anunciou este senhor que acaba de me fazer perder um cliente?
"Ele não me deu tempo", foi a resposta.
- Espero que tenha uma boa justificativa para isso - disse o psicanalista para o jornalista depois de desligar o telefone.
- Encontraram o assassino - repetiu o jornalista com ar soturno.
- E daí?
- Isso não é de seu interesse?
- Não. E se o encontraram, o que você quer?
- Soube que a polícia esteve aqui novamente, junto com os pais da garota. Sobre o que conversaram.
- Sobre o crime.
Os móveis pareciam de chumbo. Havia tensão entre eles.
- Não seja estúpido.
- Por favor, se retire - voltou o psicanalista, levantando-se em direção a sua mesa.
- Eles chegaram ao assassino depois de falar com você.
Em silêncio, o psicanalista voltou as costas para seu interlocutor.
- Sente-se.
Acendeu um cigarro. Apagou-o pela metade e voltou-se para o jornalista brincando com o graveto entre os dedos.
- Quem é o assassino? Aquele mendigo safado que vivia comento ela?
- Sei apenas que ele é um mendigo. O mesmo que foi visto saindo corrido da cena do crime pelos seguranças. Eles reconheceram-no - o jornalista falava com tom jocoso.
- Comparam o sêmen?
- Não foi necessário após o reconhecimento das duas testemunhas.
- Estúpidos. Condenam um homem sem maiores evidências. O que há com eles, não são capazes de encontrar a resposta e criam uma outra?
O médico sentou-se. Apontou com o mindinho para o jornalista e seguiu em movimento de gancho.
- Eles não colocam isca no anzol. Pescam o que querem, quando querem.
- Porque a família dela veio junto? Perguntou o jornalista.
- Apenas os pais vieram. Queriam saber se realmente eu disse atrocidades sobre a filha deles. Leram sua matéria.
- E a polícia? Perguntou de novo.
- Vá a merda. O que você quer aqui?
O psicanalista começava a perder a paciência.
- Não foi ele que matou a jovem. Você e eu sabemos disso.
- O que há? Encontraram o maldito assassino e você diz isso?
O psicanalista estava a ponto de perder o controle novamente. Se acalmou.
- Ele confessou o crime? Não. Ele disse ter batido alguma vez nela? Não. Ele apenas assumiu que ela o procurava, como a outros, dava dinheiro para eles em troca de sexo. Nada mais, nada menos.
- Ela ainda pagava para eles?
- Segundo o acusado, ela pedia sexo leve, carinhoso. Sem beijos, mas com carinho.
- Então porque o corpo foi encontrado cheio de marcas de violência, ensangüentado, cortado, rasgado, desfigurado?
- Você viu o corpo?



_epílogo

Hoje, na prisão, vejo que realmente nem todos aqui são culpados. Assim como eu.
Fazia uma quarta-feira cinzenta na capital. Eu esperei por este dia durante muito tempo. Perdi horas no consultório planejando meu pequeno delito. Segui Ana Beatriz durante dez dias. Era sempre a mesma coisa. Ela ficava a tarde toda das segundas e quartas-feiras bebendo em um bar com duas amigas. Ela deveria estar na biblioteca da Henrique Schaumman e na seqüência deveria ir para meu consultório. Era o que a família pensava. Ela deixou de freqüentar as sessões e não avisou os pais, que não foram avisados também por mim. Foi o tempo que tive para elaborar meu plano? Dez dias. Depois de beber bastante ela ia direto para a casa do namorado. Pega um ônibus que desce a Rua Sumidouro e desce no último ponto da rua, próximo ao Detran de SP. Eu a segui o caminho todo em meu carro, sabia onde ela ia parar. Estacionei o carro na calçada oposta ao restaurante de esquina que tem ali. Desci do carro seguro e apressado. Nunca estive tão consciente de um objetivo como me senti naquele momento: todos os passos, todas as pulsações de meu coração, todo a vibração da rua estavam sob o meu controle. Não dei tempo do ônibus, vazio, se afastar muito. O chumaço embebido em clorofórmio a derrubou rápido, estava já alcoolizada. Trazer o corpo para dentro do terreno baldio cheio de eucaliptos que fica logo atrás do ponto de ônibus foi simples, sou um homem forte.
Comecei chutando a buceta dela. Ela não acordava. Depois beijei a boca. Quase vomitei com o gosto do clorofórmio. Meu pinto parecia uma tora, de tão duro. O esfreguei por todo o corpo dela, sobre a roupa. Ela não acordava. Acariciei os cabelos de leve. Dei um puxão forte. Ouvi um oco. Comecei a bater na cara dela, dei tapas, murros. Ela não acordava. Comecei a rasgar, então, a roupa dela com raiva. Ela tinha que me ver, saber que eu estava ali fazendo com ela tudo que ela gostava, que eu ia gozar dentro dela e fazer ela lamber a própria buceta até sufocar. Ela não acordava. Com um graveto curto e resistente fiz diversos arranhões e cortes ao longo da barriga dela. Enquanto a cortava, cuspia e beijava aquela barriga branca que se enegrecia com o sangue escuro da noite. Virei-a de costas e lambi seu ânus. Senti um pequeno tremor ao longo de todo o corpo. Continuei a carícia ao mesmo tempo que rasgava suas costas com o graveto. Ela parecia começar a despertar. A virei de frente para mim. Seu rosto estava irreconhecível, desfigurado. Beijei sua boca, coloquei meu pinto em sua orelha e no nariz, senti a viscosidade do sangue sobre os ferimentos. Enfiei todo meu pênis na boca dela. Estava seca, parecia uma lixa. A virei de costas novamente, levantei-me e chutei aquela bunda branca, sem nenhum ferimento ainda. A penetrei no ânus lambuzando meu pinto com o sangue que abundava pelas costas. Não gozei. Eu queria que ela me visse. A virei de frente para mim e penetrei sua doce vagina peluda. Enquanto a fodia, furava o rosto dela com o graveto e puxava os pentelhos com força, em pequenos chumaços, para arrancá-los. Ela morreu antes que eu percebesse, sem saber que eu a fodi do jeito que ela gostava, sem saber que eu a desejava. Deitei sobre o corpo flácido, mole, sobre a barriga negra de sangue e terra e folhas, e gozei estrondosamente em um simples papai-e-mamãe.
Ouvi barulho de gravetos quebrando e acordei de meu torpor. Voltei àquela lucidez de antes e esperei. Alguém corria para fora do terreno. Encontrei ali o assassino. Esperei apenas um tempo. Assim que passou um ônibus sai do terreno sem que ninguém me visse. Entrei no carro e fui para casa, me lavar e jogar fora minhas roupas ensangüentadas.


Fim (Mauro Litrenta)

***

Comentários

Anônimo disse…
Oi Mauro... Anda sumido, como está? Aliás, forte essa última parte do texto, hein? Que coisa horrorosa...rs! Aparece... Jeane
Sílvia Alves disse…
muito bom este conto! arrepia!

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