Pular para o conteúdo principal

_o combate [conto]

Era uma trégua, um momento só nosso. Mas deles também, e isso incomodava. Estávamos todos lá, cansados, xingando a mãe deles, nos olhando, nos medindo em cada centímetro de medo. Pareciam muitos do outro lado, grandes e fortes, armados e protegidos; mas estávamos no mesmo número, tínhamos as mesmas armas e talvez parecêssemos em número maior do que realmente éramos. Apenas alguns que se feriram em quase uma hora incessante de combate ficaram mais afastados e foram substituídos; eles ainda estavam inteiros, e isso nos assustava. Seriam monstros vindos das estórias que assistíamos na tv? Acho que não, apenas nosso medo nos deixava vê-los tão grandes.
Estávamos parados, do nosso lado, observando em silencio o silêncio de nossos adversários, tentando encontrar no sossego deles alguma resposta, achar naqueles olhos distantes uma tática surpreendente que iria nos derrubar rapidamente, nos deixar baixos e sem vontade de continuar. Precisávamos desarmar a surpresa. Ninguém do nosso lado era entreguista, dizia "foda-se, já era". Isso não existia entre nós, que há tanto tempo fazíamos a mesma coisa, todos juntos e fortes. Poucos se foram, alguns entraram e estavam ali como se sempre houvessem estado. Mas nunca um adversário fora tão imponente: eles pareciam gigantes de pedra que iriam nos massacrar, nos jogar para cima feito uma bola de futebol e chutar com tanta força que não mais respiraríamos por muitos minutos, longos e tenebrosos, de dor impotente, de fraqueza diante deles, de uma fraqueza tão pequena que chagaria a nos envergonhar.
Tínhamos o número - mas eles também; eles tinham a força - ao menos a psicológica- e nós não. Olhávamos por sobre a tênue linha que nos separava e eles pareciam distantes, apenas esperando nossos primeiros passos para recomeçar o torturante e – por que não? – prazeroso combate. Mas não estavam longe, estavam, na verdade, bem mais próximos do que gostaríamos, nos observando da mesma forma que nós os olhávamos, nos intimidando com seu poderio – a nós parecia bélica toda aquela força que nos derrubava antes mesmo de fazer algum esforço.
Sabíamos que não podíamos fugir, não havia como, e decidimos lutar até o fim - como sempre. Não sei porque, mas naquele momento nossa essência estava perdida; ao menos, se você estivesse lá com nós perceberia, estava escondida em algum lugar mais profundo e misterioso que a alma humana, e nossa decisão de vencer foi tomada apenas porque estávamos juntos na mesma merda, o motivo único que realmente existia naquele momento. Não tínhamos força diante de tamanho adversário. Nenhum de nós conseguia criar uma estratégia eficiente. Muitas surgiram, muitas, mas cada uma delas parecia ser concebida para ser destroçada na força deles. Olhávamos a distância não tão grande que tínhamos que percorrer, olhávamos as linhas e limites de nosso campo de ataque e tudo o que sempre fizemos e sempre deu tão certo ali parecia que iria falhar, que seria tão ineficaz quanto tentar matar um peixe afogando-o. Tínhamos apenas uma opção: transformar aquilo tudo em um combate puramente estratégico e determinado pela vitória. Nosso medo não poderia transparecer, era tudo o que sabíamos. Todas as armas estavam destruídas, as nossas e as deles, então porquê eles pareciam maiores e mais fortes que nós se estávamos em pé de igualdade? Esqueça os gigantes de pedra, eles eram cada vez mais montanhas intransponíveis que nos matariam aos poucos, sem ódio ou compaixão, apenas por serem mais fortes. Nossa única estratégia era, realmente, enfrentar o medo como se eles fossem o medo.
Nos levantamos lentamente, um a um, nosso tempo havia se esgotado. A eternidade seria pouco para podermos colocar nossos nervos no lugar. Eles nos olharam todos ao mesmo tempo, já em pé, sabiam que teríamos que voltar à batalha. Nossos passos eram pesados e densos, carregados de uma força magnética que os prendia ao chão. O bloco que formara a união deles parecia uma muralha, não como a da china, mas maior, e seus passos ecoavam e pareciam bater sob os nossos pés. Seguimos até onde podíamos e nos concentramos ao máximo para nos posicionar da forma correta. Começou a chover, uma chuva que caía sempre e cada vez mais forte. Porra, todos ali eram fortes, até a chuva, menos nós. O barro se formava rapidamente e não víamos mais que alguns metros à nossa frente. Lá, cara a cara, eles se tornaram samurais mascarados prontos para decepar cabeças e troncos inteiros, arrancar com um único e certeiro golpe toda a alma que existisse em cada um de nós. Ficaram grandes e parados, curvados sobre nosso medo, apontando o dedo e xingando nossas mães. Éramos crianças indefesas procurando uma mesa para se enfiar debaixo, uma mãe que nos desse a mão e nos puxasse para seu colo. Mas não tínhamos nada disso.
Quando o juiz soprou o apito e deu início ao segundo tempo da partida, eles se tornaram menores, se tornaram crianças novamente, como nós, sem caras de samurais ou gigantes de pedra ou monstros de estórias da tv, apenas com uma bola sob os pés e um gol para defender, exatamente como nós. E todos voltamos a brincar de futebol como brincam as crianças.

***

mauro, junho de 03

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

_sustância [poema?]

relógios relógicos Substância do tempo instância do instante prismas numéricos ponteiros pesados apontam, persistem perfuram a massa insustentável da vida passando entrando saindo andando sombra solitária navegando terra adentro procurando um refúgio lunar dígitos despidos repetem repetem repetem concordam contínuos relógios, relógicos parados não mudam o tempo a nos comer ***

_abandono [conto]

Nos abandonamos, finalmente, no dia em que ela soube que eu também sabia que precisávamos conversar. Na verdade, ela foi abandonada primeiro. Não era um jogo, era uma cena de um jogo. E a tática da melhor defesa vinha a calhar, enfim, para quem não sabe como se defender no cara-a-cara. Até que não pudemos mais resistir e nos entregamos suavemente a uma conversa leve e franca, intensamente a um sexo voraz e tenso, demoradamente a um sono perturbado e solitário. Primeiro sentamos na beira do mar. Olhamos as estrelas e ela gostava de discutir sobre a imensidão. Minha idéia de que éramos um vírus, embasado no fato de que somos a única espécie que não se adapta ao meio, a deixou sinceramente perturbada. Perdemos horas tentando explicar um para o outro que estávamos abertos a qualquer tipo de idéias. E ganhamos admiração. Era carnaval, pessoas comuns se tornavam exóticas. Não houve luxúria, mas houve paixão. Sem exotismos. Nos perdíamos pouco, ainda, no silêncio de nossos abraços. Ainda prec

_a chuva [conto]

A chuva caía rala, molhando devagar as vagas plantas esquecidas no jardim. Lembrança. Anoto mentalmente: estou com saudades de alguém. Pela janela são visíveis as grades e os remédios de folhas largas já um pouco afogadas, esbranquiçadas pela água leve que insiste em entrar em minha memória. Domingo à tarde. Estávamos nus sobre um colchão fino que permitia nos espalharmos para além de seus limites sem sentir a transição. O enorme avarandado do sítio era infestado de plantas. No ofurô, uma hora antes, começamos algo que talvez não soubéramos ainda como terminaria. Cozinhamos nosso sexo na grande bacia oriental; nossa mestre-zen do prazer a longo prazo, ela costumava dizer. Era fim de março e, estranhamente, pouco chovera. Na floresta do alheamento meus sonhos eram permeados por uma sensação breve de umidade e pelos seios moles e quentes dela sobre meu braço. As nuances de cheiros passaram de sol e calor a uma apreensão da natureza, premeditação de chuva em abundância. Nos levantamos e,