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_toda casa de esquina tem mais de um fantasma

TODA CASA DE ESQUINA TEM MAIS DE UM FANTASMA

Prólogo

Só no final da minha vida percebi que não precisamos estar sós para nos sentirmos abandonados. Não que estejamos realmente abandonados, mas apenas que nos sintamos abandonados. Essa curta e falha narrativa do que vivi é nada mais que uma história sobre uma casa e os fantasmas que a habitaram. Fantasmas que a vida, imprevisível, se encarrega de criar. O mais fantástico nisso tudo é que, no fim da picada, vejo que os fantasmas nunca estiveram dentro de outro lugar além de minha solidão.

I

O castelo

Um dia percebi que além da janela de nossa caixa havia outras pessoas. Elas não transitavam pelas calçadas quebradas de meu bairro. Elas simplesmente abriam suas caixas e saiam com outras caixas que as levavam não sabia eu para onde. Papai me disse que elas iam trabalhar, assim como ele fazia todos os dias. Essa coisa das caixas foi ele que me explicou: as pessoas vivem em caixas maiores. Então elas pegam suas caixas menores e móveis e vão para outras caixas, de diversos tamanhos, onde fazem seu trabalho em troca de um papel que pode ser trocado, por exemplo, por chocolate. Guardei o papel do chocolate e outros papéis por muito tempo, para trocar por mais chocolate. Foi uma grande decepção saber que o papel pelo qual as pessoas trabalhavam não era o de chocolates.

No ano em que fui para a escola, muito tempo depois da minha descoberta das pessoas lá fora de nossa caixa, o castelo recebeu o casal real e seus dois filhos. Eu não tinha ido pra escola antes, mas sabia o que era “dois”. Mamãe era fantástica pra essas coisas. Na hora lembrei de um filme sobre o Papai Noel que assisti. Era o seguinte: um casal se mudava para um bairro e todos os vizinhos iam lhes dar as boas vindas levando um presente em outras caixas pequenas. Mas esse casal que se mudava para o novo bairro era o casal Noel. Um casal Noel sacana, por que eles usaram todos os presentes que ganharam nas chaminés das caixas da vizinhança e depois sumiram sem ao menos dar tchau e agradecer a boa recepção. Papai, mamãe, vamos dar as boas vindas ao rei e à rainha? Eles têm um príncipe e uma princesa. E podem ser a família Noel. Papai e mamãe não me entenderam. E por isso não fomos dar as boas vindas ao rei e à rainha. Papai e mamãe eram assim, meio estranhos mesmo. E quando passaram a me colocar semanalmente na caixa de transporte as coisas pioraram: eu ficava um tempão conversando com um amigo deles. Ele me fazia todo tipo de pergunta e mostrava umas figuras estranhas que eu gostava de olhar e adivinhar o que eram. Era uma caixa pequena a dele, de uma sala só, em uma caixa grande cheia de várias caixinhas iguais a dele, toda branca por dentro e perto do trabalho do meu pai. Ele usava uns óculos na frente da cara e outro nas mãos. Maior e com uma lente só. Ajeitava os óculos quando olhava pra mim com cara de surpresa, depois abaixava de novo a cabeça e acertava os óculos de mão e uma lente só sobre um livro grande e cheio de fotos que tinha em seu colo. Eu gostava dele, mas de repente, sem mais nem menos, pararam de me levar pra visitá-lo. De qualquer forma, foi lá na caixa dele que vi, pela primeira vez de perto, a princesa moradora do castelo nosso vizinho. Ela parecia triste e não estava vestida com roupas de princesa. Senti-me triste e por isso perguntei pro amigo dos meus pais porque é que a princesa não estava usando suas roupas reais. Ele começou a me fazer um monte de perguntas e acabou não respondendo minha pergunta. Acho que foi quando entendi o que significa a palavra idiota.

Certo dia fui pra escola, uma caixa grande dividida em várias caixinhas em que se colocam as crianças para aprenderem a entender as palavras e a desenha-las (desenho mal), e lá estavam o príncipe e a princesa, juntos, em um canto. Eu queria conversar com eles, mas ela estava chorando e achei melhor não ir até lá. Oi. O príncipe me olhou com um olhar que eu nunca mais esqueci. Não havia nada lá. E havia tudo o que eu sabia sobre eles. Oi. A voz da princesa chorava alguma coisa que eu não sabia se era um oi mesmo. As princesas não choram. O sorriso que ela me deu em troca dessa besteira que falei chorava também, mas descobri que seria minha primeira namorada. O príncipe a pegou pela mão e a levou embora. Arrastada. Arrasada.

Mamãe, tenho uma namorada. Ela mora no castelo e é uma princesa. Voltei a fazer visitas àquele amigo de meus pais duas vezes em sete dias. Antes era uma só. Essas duas vezes passavam muito rápido e começamos a falar muito de minha princesa e do castelo que ela morava. Os outros dias passavam devagar. Ela sumiu da escola. Só o príncipe aparecia e ele não falava comigo. Um dia o amigo de papai e mamãe quis ir até a escola comigo, para conhecer o príncipe, que não apareceu. O que foi bom: passei a ir três vezes em sete dias, na caixa móvel de meu pai (agora era uma caixa maior, com mais bancos), até a caixa do amigo deles. Mas, não sei porque, paramos de falar de minha princesa e começamos a falar de mim. Só de mim. Eu tentava falar dela e ele mudava de conversa, cada vez de um jeito diferente, para voltarmos a falar de mim, de papai e mamãe, da escola e das histórias que mamãe me contava de vez em quando. Mamãe e papai nunca mais me contaram histórias de princesas antes de dormir ou à tarde, no nosso quintal gramado ou à beira do lago de cimento azul que havia lá atrás de casa, perto da churrasqueira. Mamãe chamava de piscina, mas parecia muito com um lago azul que havia em um castelo de um livro que ganhei no natal do ano passado do amigo de papai e mamãe que gostava de conversar comigo. O amigo de papai e mamãe me ensinou que as caixas que papai me disse se chamavam na verdade casa. Casas, no plural. Ah, no plural. Pouco tempo depois parei de ir até a casas no plural do amigo de papai e mamãe, que me disse que meu caso deveria ser conduzido por um amigo dele, que morava em outra casas no plural. Esse amigo do amigo de papai e mamãe era chato. Mas tinha um monte de aparelhos legais, coisa de filme, eu gostava disso: ele colocava uma lanterna em meus olhos e falava pra eu não piscar. E eu piscava. E, além disso, ele gostava de falar da minha princesa.

Quando fiz aniversário, papai e mamãe resolveram fazer uma festa à fantasia e disseram que eu podia convidar minha princesa e seu irmão, o príncipe, desde que os reis viessem também. Posso mesmo? Claro, meu filho. Olha aqui o convite para eles. Eu ainda não sabia ler direito, e pedi para mamãe ler o convite para mim. Lá dizia: convido os amigos e amigas, com papai e mamãe, para comemorar meu sétimo aniversário. Espero todos com roupas de contos de fadas na rua tal, endereço tal, às 15 horas. Então Tal era o nome de nosso bairro. Ou de nosso reino? Corri para o meu quarto para olhar pela janela. Não havia ninguém no castelo. No fim da tarde vi os reis chegando. Oi. Oi, garoto. Você é o filho de nossos vizinhos, não é? Então o rei e a rainha sabiam que eu era. A princesa devia ter falado de mim. Sou, sim. Vocês vão ao meu aniversário? Vai ser domingo? Vai ser aqui no Tal, mesmo. Eles pegaram o convite perguntando o que eu queria de presente. Quero a princesa. E corri pra casa. Mamãe perguntou, à noite, se o rei e a rainha viriam com a princesa em meu aniversário. Ela olhava para meu pai e achei que a pergunta não era para mim. Filho? Vêm sim, mamãe.

No último dia de aula antes do meu aniversário encontrei com a princesa. Eu estava indo para a saída da escola encontrar mamãe para irmos para casa e vi a princesa descendo do carro do rei. Não consegui ir falar com ela, mas ela ainda ia para a escola. Mamãe, porque eles não têm uma carruagem? Quem, meu filho? O rei e a rainha, mamãe. Eles não têm uma carruagem? Não, eles têm uma caixa-móvel igual à nossa. Uma caixa-móvel? Um carro, meu filho? É, mamãe. Ela riu de mim. E não me respondeu. Dia seguinte, lembro bem, começaram os preparativos para a minha festa à fantasia. Mamãe e papai e um monte de gente que eu não conhecia estavam fazendo um barulho danado quando cheguei da casas no plural do amigo do amigo de papai e mamãe. Meu filho, o que está achando da decoração que sua mãe pediu pra sua festa? Papai, acho que minha princesa vai adorar. Ele riu de mim. Papai e mamãe andavam rindo bastante de mim ultimamente. Pelo menos pararam de fazer cara de dor um pro outro quando conversavam comigo.Papai, porque você está rindo? Porque as crianças são caixinhas de surpresa, meu filho. Quer dizer que meu pai achava mesmo que tudo se resumia a caixas.

Acordei. No dia de meu aniversário o dia estava escuro. Papai, mamãe, o sol não gosta de mim? Eu dormi o dia inteiro? Porque vocês não me acordaram? Eu corri tanto que estava sem fôlego. O quarto de papai e mamãe ficava bem longe do meu. Que horas são, amor? Quatro e meia, querida. Filhote, volta pra cama. Ainda está muito cedo. Daqui a pouco o sol vem para o seu aniversário e eu vou te chamar. Não. Vou ficar aqui com vocês, mamãe. A cama de papai e mamãe era muito grande, e eu sempre dormia no meio deles, na parte de baixo com a cabeça para baixo (o lado dos pés). Acho que eu dormi, porque de repente eu abri os olhos e o sol estava dentro do quarto. Somente eu e ele. E aquele monte de coisas que papai e mamãe tinham espalhadas por todo lado. Como ainda passava desenho na televisão, devia ser cedo. Papai e mamão entraram no quarto no meio do meu desenho preferido fazendo outro barulhão, me deram um monte de beijos e cantaram parabéns pra você pra mim. Porque você está bravo, filhão? Porque vocês não me deixaram ouvir o que o Supergalático disse pro Coisafeiaseuinimigo! Ah, é isso? Então vamos deixar pra depois os presentes dele, né, querido? É verdade, amor. Eles foram embora e só atrapalharam meu desenho. O resto dia demorou tanto para passar que cheguei a dormir de novo depois do almoço. Mamãe me acordou e me levou pra olhar a casa. Estava toda parecendo um castelo, com umas roupas de um ferro que acho que não era ferro e umas tochas que não tinham fogo. Lá na churrasqueira tinha um monte de mesas com uns panos bem antigos e mais tochas que não tinham fogo, mas que pareciam, como as outras, ter fogo na ponta. E, em cima da mesa de bolo, havia um castelo. Que castelo é esse, mamãe? É o castelo da sua princesa, querido. E está cheio de bolo dentro. Eu não entendi o que ela quis dizer. Ela riu de mim de novo e me puxou. Quer seu presente agora ou depois? Depois. E sua fantasia? Depois. Filhote, o que foi? Mamãe, será que ela vai gostar? O castelo deles deve ser mais bonito. Mamãe se abaixou na minha frente e ficou me olhando. Acho que ela sabia que eu estava com medo. Ela ma abraçou e achei que ela estava triste dentro daquele abraço. Ela vai adorar, meu filho. Vamos vestir sua roupa que já está quase na hora. Já? Já, vamos.

A festa começou só com a gente mesmo. Aí chegaram um palhaço meu amigo da escola e sua irmã vestida de sapo. Depois chegou uma princesa (sou Isolda, dizia minha amiguinha para todos os meus amiguinhos. Quer ser meu Tristão? Ninguém ficou perto dela o resto da festa). Então apareceram dois sapos, um coaxando dentro da piscina e outro falando e correndo em vez de pular. Depois chegou o Gargamel com um Smurf de ouro na mão. Mas nada da minha princesa. Tinha uns duendes e uns gnomos. Todos da escola. Depois chegou um ganso-cola-tudo bem gordinho, nosso vizinho da caixa da frente. Quero dizer, da casas no plural da frente. Os mais velhos estavam com suas roupas diferentes, também: usavam bermudas e chinelos e umas camisetas cavadas. Sorte deles, porque estava muito quente. Meu filho, venha cá. Estou indo, mamãe. Porque você está tão desanimado? Vem conhecer os nossos vizinhos da casa ao lado. Era a minha princesa. Mas ela não estava com roupa de princesa. Nem o rei com roupa de rei nem a rainha com roupa de rainha nem o príncipe com roupa de príncipe (ele estava vestido de tronco de árvore). Mamãe, porque a minha princesa está com essa roupa de fada? Mamãe olhou para mim daquele jeito que eu não entendia muito bem. E riu de mim de novo. Uma gargalhada que me assustou e, por um momento, pareceu de bruxa. Fiquei bravo e corri. Filho, volta aqui. A voz dela ainda ria.

Tenho a impressão que papai e mamãe melhoraram comigo depois do meu aniversário. Ficou tudo mais fácil em casa. E eu até parei de ir no amigo do amigo de papai e mamãe. Isso foi bom. Agora eu tinha mais tempo para ir até o castelo que não era mais castelo. E ficar com a princesa que não era mais princesa. E até o príncipe que não era mais príncipe conversava comigo tomando um lanche com o ex-rei e a ex-rainha. Eles sempre riam de mim por que eu ainda chamava minha princesa de princesa. Mas ela gostava e isso estava bom.

Às vezes acho que acordar é bom. Mas nesse dia não foi. Acordei com minha princesa me chamando. Nós vamos embora, príncipe. Eu tentei chorar, mas não consegui. Fiquei com vergonha e saí correndo pro meu quarto. Minha princesa ia embora. Justo agora que eu sabia que ela não era princesa e que a gente ia poder ficar junto pra sempre. Filho, vem aqui. Sua amiguinha quer falar com você. Eu não fui e não saí de meu quarto por uns três dias. Lembro do caminhão indo embora e do rei e da rainha entrando no carro. O príncipe também entrou e a princesa ficou parada do lado de fora olhando para minha janela. Deu-me um tchau e entrou no carro. E foi embora com todos eles. Eu fiquei vazio pela primeira vez em minha vida. O castelo ficou vazio novamente.

II

A casa mal assombrada

Parei com aquela besteira de castelos e princesas assim que percebi que tinha pelo no saco. Eram poucos, ainda, mas lá estavam eles. E o castelo se tornou menor quando eu fiz quinze anos e resolvemos comemorar, eu e meus amigos da minha rua, invadindo o castelo. Deu a maior confusão depois, porque o dono da casa foi levar uns inquilinos novos e achou os restos de nossa festinha: alguns maços e muitas bitucas de cigarros, latas de cerveja e uma garrafa de vodca da boa (vazia, claro), além do que sobrou da fogueira que fizemos na sala principal. Mas as pichações não eram nossas. Nunca ninguém soube que fomos nós, mas foi um escarcéu que durou umas boas três semanas. Cara, a gente não podia contar ou íamos nos ferrar, e fizemos um pacto: o do silêncio da casa mal assombrada. Foi bem legal.

Pouco tempo depois dessa coisa toda eu estava voltando do campinho, cansado e sujo, e havia um caminhão parado em frente ao ex-castelo-agora-casa-mal-assombrada. Um caminhão de mudança. E não pude deixar de pensar na minha princesa. Um fiapo de cheiro de pensamento sem entusiasmo nenhum. No mesmo dia, no fim da tarde, chegaram os vizinhos. Meu pai disse que se tratava de um coronel reformado do exército, sua esposa e seus três filhos. Uma moça mais velha e dois rapazes mais jovens. Ela tinha 17, os meninos tinham 15 e 13 anos. Ela era fruto (e fruta) do primeiro casamento da esposa do general. Bem bonita, mas com 17 anos, não estava para mim. Fui até lá conhecer eles todos. O tenente era um cara de cara feia, mas parecia já ter bom coração logo depois de planejar a destruição do inimigo. Sua esposa, tive a impressão de que a conhecia. E de que era ela quem mandava na casa. Coisa normal, me disse meu pai certa vez, já mais velho. Ela sorria bem, mas precisava usar aparelho nos dentes. Os meninos, eles não me interessaram. Pareceram idiotas demais. E então, onde vão estudar? Quem me respondeu foi a dona da casa. No meu colégio. No dia seguinte, à noite, fizemos uma reunião da turma da rua para receber os novos amigos. Mas os pais deles não os deixaram sair de casa.

Oi. Oi. E hoje, será que vocês poderão sair? Sabe o que é, meu irmão do meio, antes de virmos para cá, foi pego tentando furtar bebidas de uma loja de conveniência com uns amigos. E por causa disso meu padrasto não nos deixa sair. Mas vamos fazer assim: me encontra à meia noite lá atrás de casa, você pula o muro e eu saio. Pode ser? Claro. Quando cheguei na rua avisei todo mundo do que eu ia fazer. A turma se reuniu toda até tarde da noite e ficamos mirabolando como ia ser minha primeira vez com aquela garota que, no mais, precisava apenas de um aparelho. Contei pra eles sobre o irmão do meio e disse que poderia ser uma boa aquisição para nossa turma ter um cara do calibre dele. Sobre o mais novo eu ainda não sabia nada. Nem sobre ela. Mas deveriam ser da turma, também, já que eram da rua. Chegando perto da meia noite alguns foram para casa e outros foram tomar posições estratégicas com binóculos (havia uns quatro garotos para cada binóculo). Eu fui pra casa me preparar. Não me deu dor de barriga como da primeira vez que estive com uma garota assim sozinho (ela seria meu segundo beijo na boca. E quem sabe o que mais?). Quando chegou a hora, olhei para a casa mal assombrada para ver se havia luzes acesas. As luzes de um quarto piscaram. Só podia ser ela. Saí em silêncio para os fundos de casa. Para pular o muro eu teria que subir no telhado da churrasqueira. Ela me garantiu que haveria uma escada encostada no muro, que era alto. Subir no telhado era fácil. Eu fazia isso desde os nove anos de idade. Achar a escada também foi fácil. O difícil foi dar de cara com o pai dela me esperando do outro lado.

Minha mãe e meu pai foram acordados pelo general em nossa campainha. Esse trombadinha é filho de vocês? Eles me olharam e olharam de novo para ele com cara de espanto. Ele estava invadindo minha casa e foi pego em flagrante. Eu quero chamar a polícia. Sou coronel do exército e não admito esse tipo de atitude em lugar algum em que existam pessoas descentes como eu. Olha, meu senhor, acho desnecessário chamar a polícia antes de sabermos o que aconteceu. Vamos entrar? Eu não quero entrar. Esse pirralho ia roubar minha casa. Pai, mãe, não foi nada disso. Eu ia ver a filha dele. Eles me olharam com mais espanto. O tenente também me olhou com espanto. Sr. tenente, ela que combinou comigo. Pode ver que ela até deixou a escada lá. Eu sou coronel. A escada fui eu que coloquei lá para ver de onde vinha a rachadura no muro. O filho de vocês é, além de ladrão, mentiroso. Sr. coronel, isso nunca mais acontecerá. Deixe que dessa vez nós resolvemos com ele e, caso aconteça novamente, o Sr. pode ir direto para a polícia e depois nos avisar. Ele soltou meu braço que até então tinha em sua mão esquerda (forte), e olhou para meus pais sem raiva nem calma. Boa noite. Boa noite, e nos desculpe, Sr. coronel. Meus pais não me bateram nesse dia. Apenas perguntaram o que havia acontecido. E de tanto eu insistir na história da filha mais velha eles acabaram acatando a idéia de que eu estava mentindo. Se soubessem o que estava por vir provavelmente teriam me batido bastante.

Virei piada na escola do dia pra noite. Cheguei a perguntar pra ela o que havia acontecido. Ela riu de mim. Não me senti vazio. Pelo contrário, me senti cheio de uma raiva que preencheu minha vida durante os dias em que moraram ali o general e suas crias. Durante mais de dois meses não falamos com o pessoal da casa mal assombrada. A turma ficou toda do meu lado. Até que um dia eu sai pra rua dei de cara com a turma toda rindo junto com a garota mais velha. Eu parei no meio do caminho e olhei para eles espantado. Eles me olharam de longe e me chamaram para ir até lá. Eu não fui. E nunca mais apareci na rua pra ficar com a turma. Na escola, me isolei de todos. E comecei a me sentir um tremendo idiota. Até que um dia o irmão do meio veio conversar comigo. Você está com raiva daquela idiota? Nós só mudamos pra cá por causa dela. Ela só causa problemas. Não ligue pra ela. Quer um cigarro? Sim, obrigado. Fumamos juntos o último cigarro dele. Ela me disse que vieram pra cá por sua causa. Que história ela contou? A da maconha, a do motel ou a das bebidas? A das bebidas. É, ela gosta dessa coisa de furto. Sempre inventa alguma coisa e culpa a mim ou ao meu irmão. Talvez o fato de meu pai ter feito os pais dela se separarem a deixe assim. O irmão do meio me pareceu um cara legal. A irmã mais velha é que não gostou de nos ver andando juntos.

Meu amigo sumiu por uns dias. Apareceu na escola só no último dia da semana, os olhos fundos e um braço enfaixado. Cara, teu pai te bateu? Não. Foi minha mãe. Minha irmã falou que nos viu conversando. Mas não esquenta, falei pra ela, depois, que você era um cara legal e ela deixou eu conversar com você. Minha irmã está puta com isso. Que mal, cara. Desculpa. Você não tem culpa.

Já fazia uns dois anos que eles moravam ali e eu havia até esquecido o que me aprontara a irmã mais velha. Era o segundo dia da última semana de aulas e todos estavam em provas e afins. Eu, o irmão mais velho (que estudava comigo então) e o mais novo éramos amigos, eu acho, e estávamos sempre juntos. Eles já sabiam até da história do castelo e da fogueira, entre algumas outras que aprontei com a turma da rua. Eles também eram flores fedidas. Chegamos da escola e íamos ficar na piscina de casa bebendo cerveja do meu pai e do pai deles até ficar bêbados. Voltei a conversar com os garotos da rua voltaram, mas pouco convivíamos. Eles não iam mais em casa nem eu nas deles. Só jogávamos bola de vez em quando. Nesse dia da cerveja pilhada com piscina, no fim da tarde, ouvimos alguns gritos na rua, berros mesmo, e saímos bêbados pra ver o que acontecia. Na nossa bebedeira não acreditamos no que víamos: a irmã mais velha estava sendo puxada pelo cabelo, sem roupas, apenas enrolada em um lençol, pelo coronel (agora eu já sabia que ele era coronel, mesmo). A porta da casa dos vizinhos da frente estava aberta e da janela de cima o vizinho olhava o que acontecia, meio escondido. Uma semana depois o vizinho que olhava da janela se mudara. Meus novos amigos (eu achava) também se mudaram um tempo depois. O coronel não suportara a idéia de todos saberem que a filha dele que não era filha dele dava pra um camarada casado há dois anos.

III

Meus vizinhos reais, na casa real

Depois que meus pais morreram eu e minha família viemos morar na casa que morei até os vinte e oito anos, quando me casei. O ex-castelo-ex-casa-mal-assombrada é agora uma casa a mais no bairro. Lá moram meu amigo Fábio, sua esposa Cláudia e seus dois filhos, João Pedro e Manuela, a Manu. João Pedro tem a idade de meu filho, o Pedro de 4 anos, e a Manu tem um ano a menos que meu primeiro filho, Marcus, ela quinze e ele dezesseis. Minha esposa engravidou um ano antes nos casarmos.

Sabíamos que Manu e Marcus namorariam quando mudamos de volta, e a idéia me pareceu bem boa. O Fábio não gostou muito disso quando comentei com ele, como brincadeira, em um dos muitos churrascos que fazíamos lá em casa. Meu filho é como eu era: por mais que ele saiba o que está certo e o que está errado, nem sempre isso é o certo e é o errado. Por isso apronta várias. Da primeira vez que eu e minha esposa, Flávia, os pegamos transando foi em minha casa, e nada houve de tão errado, afinal de contas eles usavam camisinha e tinham idade e informação (e hormônios no motor) pra isso. O problema veio da segunda vez em que foram pegos sem roupas. Eles estavam na casa de Fábio. E foi justamente ele quem os encontrou no meio da tarde que deveriam estar na escola, nus, gemendo e sofrendo com o calor de 32 graus deste verão (no quarto escuro e então úmido, provavelmente pra mais de 36 graus). Conversamos com ele depois de trazer meu filho pelo braço, espumando de raiva. Nada o convenceu das intenções do casal apaixonado. Mas, por incrível que pareça, eles não se mudaram. O que achei ótimo. Não sei o que havia naquela casa que tantos fantasmas deixou em minha vida. Muitas pessoas queridas se perderam de mim por morar ali, simples assim. E, pelos erros da vida, meu filho engravidou Manu dois anos depois, namorando escondido de nós e deles. Fábio, por força do destino, voltou a conversar conosco. Mas nunca mais chegou em um churrasco, mesmo que fossemos nós quem os convidava. Cheguei a temer, em minhas paranóias com meu amigo, que ele fosse pai de Marcus. Minha esposa me garantiu que isso era impossível, eu assenti, claro, não estava em meu juízo mais perfeito para dizer uma coisa dessas para a mulher que tenho. O fato é que, de todos os fantasmas que a vida e aquela casa me trouxeram, o mais improvável e mais querido é, insensatamente, o mais próximo dos poucos amigos que consegui trazer nesses anos de vida. É incrível, mas hoje, sempre que passo por casas de esquina que são grandes, não consigo deixar de pensar que toda casa de esquina tem mais de um fantasma.

Epílogo

Agora que sabem um pouco da minha história, gostaria de contar outra: minha esposa morreu e meus filhos moram longe, em outros países. Me sobrou algum dinheiro e pago com isso um asilo. É uma boa maneira de fugir à solidão que me assolou. E, nessa solidão, descobri outra coisa, talvez a mais importante de todas as que descobri na vida: nascemos e vivemos pelo sexo. Alguns morrem pelo excesso dele. Mas morrer, todos morremos pela ausência, seja do que for: de amor, de carinho, de afeto, de sexo, de comida, de calor, de saúde. De vida. Felizmente minha princesa voltou. Todas as noites, depois de tomar meu Valium, ela vem em seu vestido de fada me dizer que me espera. Como não gosto de fazer as pessoas esperarem, acho que vou apressar um pouco as imprevisibilidades da vida. Ah, caso alguém se interesse, meu nome é Plínio.

FIM

Mauro Litrenta

Comentários

Anônimo disse…
Uau!!!!!! Tá ficando bem bom nisso, hein? Beijo!
Unknown disse…
Cara... comecei a ler, ler, ler e não consegui parar enquanto não terminei. Acho que isso diz tudo.
Abrax

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