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_caseiro [conto]

Existe um certo tipo de gente que não dá. Quando eu digo “não dá”, pretendo que subentenda-se que não dá para conversar, não dá para ficar perto, não dá para ser amigo, não dá para ouvir, não dá para sair junto, não dá para tra-balhar junto, não dá para nada, nem para falar bem. Aquele tipo que é mal humorado, chato, cheio de manias, vive “causando”, como dizem alguns. Se está bom para ele, também estará para poucos outros iguais a ele. Se dizem incompreendidos, pertencentes a um outro universo de pensamentos, menos niilista, mais “elevado”, mais cheio de idéias e atos do que este a que pertence a maioria dos mortais. Mas, querendo ou não, são uns tipinhos bem chatos.André Japiassu Tavares da Silva era assim: chato como poucos. Um mal humor tremendo, reclamão, cheio de dedos, observações e papas-na-língua. Descon-fiadíssimo. Alto e bonito, era meio moderninho, mas sem querer ser. Costuma-va ir aos lugares para acompanhar a noiva, mulher pela qual era apaixonado. Mas ele estranhava tudo, tudo o que fazia, não gostava de rotina, de hábitos idiotas – idiotas na concepção dele, claro –, de fazer as coisas por fazer, e por isso era cada dia mais chato. Por exemplo, ele deixou de fumar, um dia. Mas assim, acordou e falou para seu ego: “Não vou mais fumar!”, e não fumou. E achava que isso lhe dava o direito de pegar todo pretendente a ex-fumante pela sua maior fraqueza, emendando: “Se eu consegui parar de uma vez, qualquer um consegue”, e contemplava os fumantes com um olhar superior, quase um sorriso de satisfação. Outro exemplo: se a noiva estivesse em algum lugar, um bar ou outra coisa qualquer onde ele achasse que a maioria das pessoas era idiota demais, lá então estampava ele aquela cara de insatisfação com o mundo e nada havia que pudesse reanimá-lo, a não ser ir embora. E vi-nha a pergunta: “O que é que não está bom?”, respondida sempre com a mesma frase de efeito duvidoso: “O que é que eu estou fazendo aqui?!?! Que-ria estar na minha casa!”. Mas era um homem, com todos os defeitos que ti-nha, amado como poucos; e sua noiva era especial. Maria da Paz, esse era o nome da coitada. Uma garota inteligente, bela, simpática, séria, poeta, artista – desenhava muito bem, mas era meio repetitiva nos temas, fato que o fazia criticá-la sem dó nem medo –, uma coisa rara. Às vezes ele até brincava, di-zendo que “como ela pode nascer mulher sendo aquilo tudo”; machista, mas uma brincadeira. Gostava muito de sair, de ir a boates e bares da moda, mas por outro lado gostava de acampar e tocar violão na beira de uma fogueira tomando vinho de caneca. Mulher rara, de tantas qualidades invencíveis.E eis que tão singular par resolveu, finalmente, se casar. Data marcada, eles passam a ficar mais tempo juntos do que nunca, e o mal humor dele, que há muito ela já vinha reclamando, chega a estados insuportáveis. De tudo ele re-clama, e, em qualquer lugar que estejam, para ele não está bom: ou por achar que ela está flertando com alguém – e vice-versa –, ou por que diz que as pes-soas ali são todas muito fúteis, idiotas, estúpidas, meros robôs, ou porque a música é ruim – nestes casos costumavam concordar –, ou porque a cerveja estava quente, ou porque o lugar era quente demais, apertado, insalubre, muitos fumantes, falação, preço... não havia escapatória, sempre havia algo de ruim. E, em determinado momento, lá vinha a pergunta: “Mas, se aqui não está bom, onde é que estaria?”, e a tediosa resposta: “O que é eu estou fazen-do aqui?!?!? Queria estar em minha casa!”. Mas aquele amor era maior que a vida, como dizem os poetas mais românticos, e assim sendo ela não desistiu do casamento, pois seu amor era grande demais. Com todos o defeitos que aquele homem tinha, ela o amava incondicionalmente, na mais perfeita aceita-ção de tantas chatices medonhas, vendo – coitada – poeta onde existia, no má-ximo, um idiota. Mas...No dia do casamento, um dia bonito, de sol brando e céu azul, com um ventinho gelado vindo do sul e o mato verde por todos os lugares, um perfeito dia de outono, algo aconteceu de errado, pois Jupiassu estava ótimo: nada o estava incomodando aquele dia. Uma alegria tremenda o dominava, uma sensação de torpor que o fazia flutuar por entre os problemas que, normalmente, o afligiri-am. Tanta era essa sensação que ele resolveu fazer tudo sozinho: foi à padaria logo cedo, buscar pão e queijo – isso ele odiava fazer; foi ao barbeiro perto de casa sem maiores problemas – odiava vida de bairro; foi pessoalmente retirar o smoking no alfaiate e ainda perdeu meia hora conversando com o homem, ou melhor, coisa mais rara, ouvindo o velho alfaiate que tantas vezes criticou por ser tão ranzinza; passou na casa de jóias para comprar um presente para a noiva; foi escolher um pequeno cravo para o seu traje. E, pasmem, em ne-nhum lugar achou algo que merecesse uma observação ou ser reclamado de alguma forma. Até ele mesmo começou a se estranhar, mas pensou: “Bom, quem sabe eu mudei? Ela vai gostar disso! Tantas vezes disse que seria tão mais fácil...”. E passou do meio-dia, chegou a grande hora, o grande momen-to. Lá estava ele, no altar montado no gramado, no fim do corredor formado pelos longos bancos de madeira que a organização mandou, para dar ares de igreja no lugar, com um longo tapete – vermelho, claro – pelo qual sua ama-da, em instantes, tornaria sua para sempre. Os convidados já se acomodando para a celebração, o padre arrumando os últimos detalhes da batina, o céu mais esplendoroso do que nunca, o brisa perfeita, para não deixar ninguém passando calor, tudo ótimo. Quando menos se espera, começa a “marcha nupcial”, sensual, tocante, brega, necessária. Todos se levantam preguiçosa-mente, depois de meia hora de atraso causado pela noiva, para vê-la entrar. O noivo treme, se emociona, fica mais nervoso, sente que os pés estão saindo de órbita, vira-se e lá está ela, de braços dados com o pai, caminhando lenta-mente para a afirmação maior do amor que sente por ele. Ele olha, quase cho-rando, pára e pensa: “Mas o que é que eu estou fazendo aqui? Eu queria estar na minha casa!”. E casa.

Fim

agosto 02

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