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_thiago ribeiro [conto]

Thiago Ribeiro era uma figura notável. Não por ser inteligentíssimo, ao que normalmente se aplica tal adjetivo, ou por ser realmente aquele tipo de gente que é impossível caminhar na rua sem ser olhado com interesse e curiosidade pelas pessoas; mas pelas coisas - quase prodigiosas - que dizia. Quer um exemplo, atento leitor? Certa vez, em um comício – sim, ele era metido com política – dissera, com todo o alto e bom som que os parcos alto-falantes possibilitaram: “Se eleito, vou trazer o mar para a cidade de S...”. Ah... a cidade de cidade de S...! Acidade de S... situa-se - acredito eu -, ainda hoje, a pelo menos 120 quilômetros do mar, no alto da serra. E é claro que esta frase de impacto, bota impacto nisso, não acionou ovação alguma, mas sim os mais variados tipos de vaia. Risos da inocência do político – não por achar ele que realmente era possível levar o mar até a tal falada cidade, mas por imaginar que o povo acreditaria em tal cascata – e, aos mais engajados, sorte dele que sua mãe já estivesse morta, pois foi ela quem pagou o pato. E, se não bastasse que xingassem a mãe do homem até ela se revirar no túmulo, quatro anos depois, tentando uma nova eleição, plantou feijão na mesma terra: “... vos digo que trarei o mar por que acredito na igualdade entre as pessoas, e sei que todo pobre tem direito de conhecer o mar ao menos uma vez na vida. Eu mesmo, só vi pela televisão.” Que erro fatal! Perdeu novamente. Além de chamar todos ali de pobres – o que todo pobre odeia – se disse ser um. Já viu pobre votar em pobre, querido leitor? Peço até permissão para o trocadilho: mas coitado do pobre homem. Não sabia que para ser eleito, ao menos, devia ter dinheiro (ou parecer que tinha). Pobre vota em rico, não em pobre. Mas, ideologias à parte, o homem se tornou notável por essas e outras, que não vêm ao caso.Certo dia – nestes em que a idade já avançava por todo seu corpo - estava ele na praça de S..., à tardezinha, com dois copos de cachaça nas mãos. Enquanto "molhava o bico" em um estacava ao lado dos transeuntes e se apresentava com orgulhoso sotaque caipira: “Dr. Thiago Ribeiro, sempre às ordens do povo”, e tão logo podia, esticava o outro copo com o líquido transparente para o possível eleitor. A alguns, dizia que era água, conforme a cara do alvo; a outros dizia em alto e bom som: “Um golinho para matar a sede e abrandar o estômago”. E a tardezinha passou, virou quase noite. Já cansado de tantas negativas, olhou para a porta do bar. Estava começando a ficar alto, e, debaixo daquele sol de verão que cismava em entrar pelas horas da noite, procurou um lugar para sentar. Como político de crenças que era, não podia deixar de procurar algo, mesmo sem saber o quê. Mas logo achou: em uma mesa, quase perto, havia um homem de meia idade, com cara de matuto – desses que o sol escurece a pele, os olhos ficam bem fechadinhos e olham de volta para você como se atravessassem a alma -, sentado sozinho. Lá foi o canastrão do Thiago, a oferecer sua “água benta”. Uma recusa quase educada que, para aqueles que potencialmente esperam um convite, foi o ensejo necessário ao sr. Thiago Ribeiro. Mas não perdeu tempo, abundou-se como um rei em seu trono, em silêncio, na cadeira vazia ao lado do matuto, esticando um dos copos. O homem sabia que Thiago sempre teve um aspecto de ser alguém importante. Ou pelo menos fez de tudo para que isso acontecesse. Sentado ou em pé, ele estava sempre com aquela postura de quem vai se encontrar com o presidente: os olhos atentos para ver se há alguém olhando para ele, o sorriso de quem é conhecido por todos, a roupa – mesmo que amassada e ganha de presente de algum benevolente coração – tem que estar impecavelmente alinhada, um braço atrás das costas o outro livre para seu esporte preferido: levantar a mão para cumprimentar todos com o maior dos conhecimentos. Isso sempre foi assim, antes mesmo de virar motivo de abrasadas chacotas.Colocados os dois copos sobre a mesa, um deles foi empurrado para o centro (com toda a precisão de movimento que isso possa exigir de alguém já levemente embriagado). Thiago esperava agora que o novo companheiro – já era companheiro de copo, e não mais um alvo – resolvesse pegar o álcool. Olhou para o lado, olhou de novo: seu copo estava na quarta parte, já muito consumido e feio. O outro copo, solitariamente recusado, estava pela metade. Ah, o velho Thiago não pensou duas vezes: em um gesto de quem faz algo meio escondido trocou ligeiramente os dois copos, olhou para o companheiro, ainda desconfiado – o matuto nem mesmo se movia, apenas olhava monásticamente para sua frente, sem se incomodar - e regozijou-se em um sorriso de íntima satisfação idosa. Aliás, a coisa toda começou a descambar para ele depois que a velhice chegou. Na bonita idade dos cinqüenta anos, suas frustrações políticas começaram a abater sua pobre alma. Mas o que é isso que digo! Jamais se passou pela cabeça dele o fato. A natureza simples e ambiciosa da qual ele era composto o impedia de chegar a tal conclusão. Perder o juízo ou perder-se na cachaça, nada disso, mas que pensar. Thiago era o tipo de gente que se deixa dominar pelos seus pensamentos de um certo jeito que chega a viver aquilo que nem em sua cabeça esta muito concluído ainda. Daquelas que inventam pequenas mentiras ali, na hora, e as prolongam por muito tempo, como se realmente as tivesse vivido. Alias, segundo ele, as maiores “feituras” da cidade de S... tinham o dedo dele. Pra que duvidar... mas até mesmo a garotada passou a perseguí-lo pelas ruas da cidade, jogando pequenas pedras em suas costas e repetindo em uníssono: "o Thiago é cachaceiro, já pegou até o padeiro". Isso quando não entravam em verborrágicos elogios como "pudim-de-cachaça", "ventania", "pé-redondo" e tantos outros que aprendiam em casa; nem nesse momento deu conta do que se tornara.Mas agora sim, com o copo cheio na mão, estava se sentindo melhor. Procurou, de todas as formas, puxar uma pequena prosa com o novo amigo, que nem ao menos olhava para o lado do homem. Coitado. Alguns ainda o chamavam de pudim de pinga, outros de Thiago cachaça, nem as crianças mais o chateavam. Mas ele acreditava, com tudo que seu coração podia, que um dia faria um mundo melhor. Ou, pelo menos a cidade de S...O sol começava a se esconder, já entrado nas curtas horas da noite, quando o velho político-pinguço desistiu. Sua campanha naquele dia, como em todos os que cadenciavam sua existência, não foi muito frutífera. Sentindo-se já encharcado de cachaça, uma perfeita esponja, largou os dois copos sobre a mesa e foi-se embora, sem se despedir, sem olhar para o lado, tropeçando em seus passos, triste como devem ser o fim dos dias de todo bêbedo. O homem do outro lado da mesa olhou para o velho indo embora, com um longo, serio e desmedido olhar de matuto. Então chamou um qualquer conhecido que estava por ali. Puxou um copo (o mais cheio) para junto de si, mostrou o outro ao conhecido. De um só gole, beberam a cachaça sem pestanejar.

Fim

agosto de 02

***

Comentários

Unknown disse…
Caramba...
acho que se esse daí ganhasse S.. seria um lugar bem melhor!!
Mas essa de trazer o MAR pra S.. foi a melhor...Além de estar a 120km do mar,S.. está a mais de 700m de altura do nivel do mar!!

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