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_no onibus, na cidade [conto]

“Hum, assim, com força. Me pega de jeito... ah, que gostoso.” Annanda é uma bela mulher. Ou, ao menos, é o que diriam grande parte dos homens que a conhecem. “Vai, vai... não pára, não pára... hum, se o Caetano fosse assim!”. Mas uma idiota, diriam outros, pois ela não trai o marido de jeito nenhum. E fala mal dele o tempo todo... vai entender! “Ai, adoro isso... que loucura! Hum, vai, vai.” Muitos, principalmente os colegas de trabalho, já o apelidaram de “o frouxo da Anna”, veja só, de tanto que ela fala mal dele. Alguns justos – são poucos – sabem que não é bem assim (os que têm mais de sessenta anos e sabem que nada vão conseguir com ela). “Vai, me bate na bunda, vai, vai, ah, vai, mais forte, mais... se o Caetano fosse assim”. Mas, com todos os poréns e frustrações, é uma mulher fiel e nunca trairá Caetano. “Ah, não... logo agora! Que merda. Ah, não... 06:30... aaaah!”. O despertador tocou. Annanda se levanta, mesmo com toda a raiva que sente. Nem olha para o namorado, que não se deu conta do barulho. Melhor para ele, pois ela acordou com extremo mau humor; e não precisa estar “nos dias” para isso: a vida que ela leva é bem diferente do que ela gostaria que fosse. Não lhe falta nada, mas isso não é o suficiente. Tem que ser o que ela quer, ou não está bom. Se não me engano, agora ela vai para o banho. Costuma tomar um banho longo, para acordar direito e ver se chega um pouco mais tarde no trabalho. Ela trabalha na recepção de uma repartição pública, não sei exatamente qual. Mas isso não vem ao caso. O fato é que ela trabalha em uma repartição, e isso a enfurece mais e mais todos os dias quando acorda. Depois do banho, seu ritual é escolher uma roupa bonita, fashion sem perder o “chiquê”, como ela costuma dizer, “para me ressaltar das outras pessoas com quem convivo no meu insuportável mundo...”, e se sente profundamente inteligente ao dizer isso. Toma um café da manhã. Na realidade, é literalmente isso: um gole de café requentado, por que já está atrasada. E vai. Mora longe, mas pega um ônibus só. A merda é que nunca consegue sentar, por que o “zabumba” já passa em seu ponto lotado. Isso a enfurece mais ainda. No caminho para o ponto, pensa no “frouxo” do Caetano. É, Annanda, realmente, bem que ele poderia ser diferente. Mas não é, e você gosta dele. Está frio, ela lembra da cama quentinha. E o sonho... Ah!, o sonho. Como é bom sonhar! Aquele homem forte, com cara de homem de verdade, que a pega do jeito que ela gosta, que faz sexo com ela no elevador. O Caetano não, ele só sabe “fazer amor”. Mas ela se contenta em sonhar. Não por força de vontade, não é isso, não. É que, mesmo o Vasto – esse é o sobrenome dele – sendo um frouxo, ela o ama. Ah, que nobreza! Mas ela cai do cavalo, ou melhor, de seu céu, quando chega no ponto: lotado! E isso já a enfurece novamente. Mas espera, fazer o quê, né, Annanda?!?! O ônibus vem mais cheio que o habitual. Não preciso mais dizer as coisas que a deixam furiosa. Consegue entrar, mas não sem algum esforço – “todo dia, todo santo dia...”, pensa – e vai para o fundo, procurar um canto para se acomodar. Aonde passa, as pessoas a olham, pois é linda, está bem vestida, cheirosa, tem porte. “Devem pensar: o que é que essa aí está fazendo em um ônibus?”, imagina e sorri para si mesma. Não percebe que são, na maioria, as mesmas pessoas que pegaram o mesmo ônibus ontem, anteontem, e assim sucessivamente, para trás e para frente. “Não, obrigada. Está bom assim”, responde ao rapaz que se oferece para segurar a bolsa dela. “Me ceder o lugar não quer, né?!?!”, é sua conclusão mental. Põe o fone de ouvidos e segue viagem tentando pensar que não está ali. Está difícil. Não cabe nem mais uma mosca dentro do ônibus, e o motorista insiste em parar de ponto em ponto. Mas aos poucos realmente esquece sua triste condição, começa a pensar que está frio, e isso a faz lembrar da cama novamente (tão quentinha!), que a faz lembrar do sonho. E pensa e repensa em seu sonho, tão bom, tão gostoso. Sente um frio na barriga, aquela sensação de estar sendo apertada do jeito certo. E sente mesmo: quando se dá conta, percebe que tem “um tarado-filho-da-puta” muito bem encaixado entre suas deliciosas nádegas, aquele roçar lento e duro em sua bunda, um roçar quase babado, que passa por um encaixe quase perfeito. “Filho da p... Mas o que é isso?”, diz seu espanto. Um absurdo tão comum, mas que a deixa estupefata. Depois pensa que todos os passageiros estavam vendo aquilo, e só ela não percebeu. “Será?”, fica desconcertada, meio com vergonha por um segundo. Tudo vira ódio contra aquele maníaco. Está com nojo, não tem coragem nem de olhá-lo. “Ai, que nojo!”, diz sua feição. Tenta desvencilhar-se, faz uma forcinha. Está com muita raiva, fica rubra, percebe que algumas pessoas olham para ela, tentando entender o que se passa, até que ela consegue virar um pouco o quadril e sair daquele “encaixe perfeito”. Sua fúria é tamanha que não olha para o maníaco ali, ao seu lado. Só quer descer logo do ônibus, “mas ainda está tão longe...”, conclui com certo tom de desilusão e tenta se acalmar. Começa a olhar os outdoors que infestam aquela avenida, a ler um por um, até que esqueçe o tarado do ônibus e troca a estação de rádio. Quer ouvir algo mais agitado; ouve uma, duas, três músicas, perde a conta, esquece os outdoors, esquece de ver o origem dos carros – nas placas –, esquece até que está no ônibus indo para a repartição. Nem de seu sonho se lembra mais. De tão absorta que está, parece não pensar em nada. Então lhe sobe um frio pela barriga, perde os pés por um instante, sente como um piscar intenso em seu sexo, sua cabeça se desliga de todo o resto do mundo e do corpo, e lá está ele novamente. Anna demorou para perceber, mas estava lá, encaixado tal qual uma criança no colo da mãe. Toda a sensação de raiva voltou, mais intensa e enojada. Ah, aquele desgraçado, como podia ser tão descarado! Não cogitou outra possibilidade: virou, e lá estava ele, como se nada estivesse acontecendo. Olhou-a com expressão meio surpresa, meio perguntando algo do tipo: “quer licença para passar, moça”. A garota sai dali com mais raiva, “sem pedir licença porra nenhuma”. Seu ponto chegando, e ela está furiosa: “Como pode? Mas como? Aquilo é um absurdo; punheteiro filho-da-puta, me encoxando desse jeito, ah se o Caetano estivesse aqui comigo, eu queria ver.”
*
O dia passa sem maiores fatos. Atende a todos que chegam na recepção da repartição sem nenhuma afetação, sem maiores atenções ou grosserias, um dia como tantos outros que ela passou e passará ali. Para não dizer que não pensou na história do ônibus, tentou imaginar, por um instante, o que faria se aquele “maníaco-tarado filho de uma puta-sem-mãe” aparecesse na recepção, bem na frente dela. “Mas como era mesmo o rosto dele? Bom, deixa pra lá...”, conclui mais uma vez.Ao Chegar em casa, à noite, Caetano Vasto ainda não estava lá. “Ainda bem”, pensa, “melhor assim”. Come alguma coisa requentada no microondas, toma um banho gostoso e vai deitar. Adormece lendo uma revista, dessas de moda e feminismo, que trata mulher como se fosse uma máquina de comprar. De repente, está no ônibus. Mas era um ônibus mais bonito, diferente daquele que ela pega todos os dias. Mas o que era bonito? As pessoas: só tinha gente bonita no ônibus. Isso a deixa alegre. Então ela sente aquele frio na barriga, perde os pés, um tesão ensurdecedor lhe sobe, e sente o “encaixe perfeito” novamente. Ah, que gostoso. Ela não quer olhar. Se todos são bonitos, por que ele seria feio? E não olha. Mas seu ponto está tão perto. Que frustrante. Desce sem ao menos olhar. Ele a segue. Então eles passam à escada de incêndio do prédio. Nossa, como ele é bonito! E como a pega de jeito. Ah!
- Amor... Anna... cheguei... – cicia Caetano.
Ela acorda, meio tonta. “Ele não me comeu”, pensa. Olha para o relógio, para ir trabalhar. São 3:30 da madrugada. Fica furiosa por dentro.
- Tive que ficar até mais tarde no escritório. Me desculpa, amor.
Olha bem para a cara do namorado.
- Caetano, você é mesmo um frouxo!

Fim

agosto de 02

***

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