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_a espada [conto - nova versão]




Eu saia da Rua Direita em um domingo que a cidade estava vazia. O centro é sempre melhor nos finais de semana. A vida passa e a gente consegue perceber. Há poucos casais passeando, alguns turistas conhecendos prédios históricos e suas histórias ou seguindo o roteiro gastronômico da cidade. Não me lembro bem porque estava lá, mas não era por nenhum destes motivos. Talvez um encontro. Não sei. Mas estava. Subi pela Praça da Sé até a João Mendes. Nenhum advogado circulava ali. Eu estava em outros pensamentos, ruminava algo, quando me deparei com a minha espada. Ela estava exposta em um antiquário ao lado de uma velha liraria de esquina que perdura à poluição. Não tive muita certeza, mas parecia a minha espada. Estava um pouco desgastada pelo tempo, com algum zinabre na bainha e escurecida em outros pontos. Seu fio não devia ser mais o mesmo, mas acho que nunca foi afiada a não ser quando foi realmente utilizada. Lembro-me a primeira vez que a vi. Havia um desfile cívico e a antiga guarda da cidade formava um pequeno bloco. Eu devia ter quatro, talvez cinco anos de idade. Meu bisavô estava em trajes policiais, pomposo, com todas as suas patentes coladas no ombro e suas medalhas espalhadas pelo peito e pela lapela. E a espada marchava junto com suas perna, uma mão no punho para controlar o ritmo e outra em continência. Via-se que ele estava cansado, mas era um dos homenegeados. Todos os guardas da cidadade eram homenageados e ele tinha uma das mais altas patentes. Não sei qual era, sei que ele era importante. O brilho da espada ofuscava o brilho que vinha das medalhas. Fiquei vidrada em meu bisavô desfilando tão soberbamente pela avenida. Ele me viu mas não acenou. Apenas sorriu. Todos os outros políciais aposentados tinham suas espadas, mas nenhuma era tão bela quanto a do meu biso, tão limpa e imponente, com uma bainha tão clara. Depois que eles passaram por nós pedi para meu pai seguir o bloco, mas ele não quis. Eu então comecei a me esticar sobre a sela de seus ombros para poder ver mais um pouquinho o grande soldado regendo seu pelotão em passadas ritmicas. Incomodado com meus movimentos meu pai me pôs no chão. Eu corri para acompanhar o desfile, mas meu punho estava firme nas mãos de papai. Mamãe, ao lado, apenas olhava, entediada, o desfile passar. Se assustou com alguns cães que latiam. Meu bisavô nem se mexeu quando latiram para ele. Ao chegarmos em casa ele já estava lá em seu pijama e com suas chinelas de borracha que não tirava para nada. Nem para o banho. Ele costumava dizr que era para não dar choque. Nunca o vira tão frágil. Dois anos depois ele morreu, e eu nuca mais vi a espada em sua cintura.

Aproximei-me mais do antiquário para poder observar melhor o objeto alí exposto. Me parecia ser realmente a minha espada. Não tinha o brilho daquele primeiro momento nem cor que emitia luz contra o sol. Mas, mesmo assim, meu coração dizia que era ela. Uma vendedora se aproximou de mim. Quer entrar para olhar algumas peças raras? Ela parecia entediada. Trabalhava na única loja aberta em toda a rua e não havia nenhum cliente lá dentro. Quero sim. E me deixei levar pelo seu tédio. Mas gostaria de ver esta espada antes. Posso pegá-la? A espada estava leve.

Um dia abri uma das oito portas do guarda-roupas embutido que tinha em nosso novo apartamento. Ia pegar um par de sapatos para papai e dei de cara com ela enconstada em um canto vazio do móvel, numa prateleira sobre as gavetas. A retirei do guarda-roupas sem fazer o menor barulho, mas era muito pesada e a deixei cair. O barulho trouxe meus pais. A espada no chão, semi-desembainhada, com seu sulco que seguia toda a curva. Ela parecia mais grossa dentro da bainha. Rita, o que você está fazendo? perguntou papai. Pais são uma coisa estranha, eles estão vendo o que a gente está fazendo e perguntam como se fosse necessário explicar que quando está claro é dia. Mas nem sempre o escuro é noite. Eu não pude responder. Essa é a espada do biso Leão, Rita, continuou meu pai. Ele e empunhou por muito tempo. E tinha orgulho disso. Está vendo este sulco que segue o fio? Ele serve para machucar mais o oponente. Sem ela os oponentes não sangrariam enquanto a espada não fosse puxada devolta. Abracei as pernas de minha mãe. Mã, o biso já matou alguém com essa espada? Não sei se minha mãe olhou com cara feia para meu pai, mas hoje fantasio que isso deve ter acontecido. Não, minha filha. Seu biso era a pessoa mais doce deste mundo e não faria isso nem nessa nem em outras vidas. Me afastou de suas pernas e pegou a espada no chão, puxou-a um pouco mais para fora da bainha para em seguida a embainhar com força, como se estivesse selando um túmulo de lembranças empoeiradas, das boas e das ruins. A colocou no mesmo lugar em que a achei. Ritinha, disse agaixando-se em minha frente, por favor, não mexa mais nela. Tenho medo de você se machucar. Assenti com a cabeça e os dedos que tinha em minha boca concordaram junto. Mamãe sempre me emocinou. Ela tirou um par de sapatos do armário e esticou-os ao meu pai. São estes? Sim, ele respondeu já sentado na cama para calça-los. Pega o calçador também, querida. Minha mãe pegou minha mão -- a que estava na boca -- e me levou para a sala para esperarmos meu pai. E o calçador? disse ele enquanto saíamos do quarto. Pegue você mesmo, Roberto. Vamos devolver a espada para meu pai hoje, ela completou. Eu nunca mais os vi brigar de novo.

Mas a espada estava leve quando a peguei no antiquário. A desembainhei e lá estava o sulco matador. Meu biso matou seis homens com aquele sulco. Dois deles com mais de uma estocada. Não havia mais sangue, claro, mas meu olfato insistiu em sentir o cheiro acre de sangue. Ou de ferro?. Temos outras armas brancas lá dentro; não quer ver, moça? Não, obrigado. Não gosto de espadas. Esta, apenas, me lembrou algumas coisas. Claro, ela assentiu. Podemos guardá-la agora?

As mãos de meu avô se aproximaram da espada vagarosamente, pegando na lâmina com algum cuidado. Meu pai, dizia meu avô, me deu ela antes de morrer, Ritinha. Ele enfatizou muitas vezes: cuide, meu filho, para que nunca ninguém se machuque com ela, nem você, nem meus netos nem a Ritinha. É por isso que sua mãe a trouxe para cá, para que eu possa guardá-la e proteger todos vocês. Meu avô era estranho quando explicava as coisas para mim. Ele falava como criança. Mas eu entendia. Ela ficou brava comigo, vovô? Não. Ela quer apenas que você não se machuque. E está certa nisso. Eu mostro a espada para você porque você é minha neta querida. Mas se sua mãe souber ela vai ficar uma arara comigo. Minhã mãe gritou Papai lá de baixo nesse exato momento. Sim, ela está comigo, respondeu ele. Já estamos descendo. Papai, vocês não estão mexendo naquela espada de novo, né?, insistiu ela provavelmente com as mãos apoiadas na cintura. Meu avô olhou para mim com cara de quem fez coisa errada e respondeu para ela que não. Vovô, faz tanto tempo que ela está aqui devolta. Quando ela vai para casa? Ele me olhou por debaixo dos óculos, fez um grande bico que transformou seu bigode branco em duas asas de um pássaro estranho e despenteado. Quando ela for sua, minha querida. Meu olhos ficaram grandes de alegria. Então ele retirou a espada de minhas mãos e pediu baixinho, podemos guardá-la agora?
Claro, respondi à vendedora. Você pode me dizer o preço dela?, perguntei levando a mão direita ao bolso.

Um dia fazia muito sol e eu não queria ir para o sítio do irmão do meu avõ, o tio Lauro. Era um domingo e todas as minhas amigas iam para o clube ficar na piscina e paquerar. Com treze anos era tudo que as garotas faziam aos domingos. Mas eu só tinha onze. Entrei no carro de papai com a cara amarrada e abraçado a uma almofada que tinha cheiro de morango. Mamãe disse que ajudava a passar a raiva. Naquele momento achei o carro vermelho de uma cor ridícula. Antes de chegar ao sítio já estava um pouco melhor humorada. Só não conversava com papai que invetou aquela visita só porque tio Lauro queria comprar umas coisas dele. Desci do carro e recebi o beijo que meu tio esticava com um sorriso. Ele era super legal. Mamãe e papai já estavam do outro lado do carro entregando ao meu tio umas coisas que ele pediu da cidade e um presente. Acho que era um tapete novo. Meu tio gostava de tapetes. Ninguém mais me via, então resolvi explorar o sítio. Eu conhecia cada parte daquele lugar mas não conseguia estar alí e não dar uma volta pela casa e esticar até o celeiro antigo. O celeiro era um grande galpão com parte coberta e parte descoberta, cheio de divisórias para apartar o gado que mais pareciam cercas fortes. Meu tio criara gado durante muito tempo. Mas nessa época plantava apenas eucaliptos com garantia da compra de toda a sua produção pelo arrendador. Coisas de economia que eu nunca entendi. Depois que ele começou a plantar eucaliptos o celeiro se tornou desnecessário e foi transformado em um grande barracão onde se guardava tudo o que não precisva ser guardado. Passei por baixo da cerca forte e entrei no barracão. Era tudo organizado por alas. Havia a ala das máquinas velhas de tirar leite e a ala do monte de ferramentas enferrujadas. Havia a ala dos plátivos, sacos e caixas que poderiam ser úteis um dia. E mais um monte delas que eu nunca consegui identificar como um bloco de coisas parecidas. Tudo com muito pó da terra vermalha que parecia cimento no chão de tão dura. Lá no fundo do barracão, neste dia, havia uma ala nova. Chamei de a ala dos guarda-roupas gigantes. Três guarda-roupas formavam a ala dispostos como paredes, um fundo e dois nas laterais. Abri cada porta que havia para ser aberta e em todas experimentei roupas estranhas. Como em um teatro, a quarta parede estava apenas em minha imaginação. Depois de me dedicar às portas, resolvi explorar as gavetas. Abri a primeira e lá estava uma farda de meu bisavô. Estava velha e desbotada e com alguns furos de uso excessivo. Tirei a calça que estava por cima e a estiquei. Era muito, muito grande. Talvez o casaco servisse. O abri e senti algo cortar minha mão. O larguei no chão e olhei minha mão. Foi só um arranhão. Peguei o casaco do chão e o olhei de frente. Como meu bisavô ficava bem dentro dele. A medalha que estava presa em sua lapela -- e que quase me cortara -- fazia com que eu pudesse vê-lo ainda melhor. Ela estava velha, também. Mal dava para ler a inscrições bravura e coragem entalhadas acime e abaixo do brasão então preto. Eu vira a bravura e a coragem de meu biso em cada uma de suas passadas naquela marcha do desfile. Ele transpirava isso. Rita, vem almoçar, gritou mamãe lá da casa grande. Tirei a medalha com pressa e a coloquei no bolso enquando corria. A carreguei comigo até os vinte anos.

Ainda com a mão no bolso segui a vendedora, que entrou na loja fazendo um gesto de venha comigo. Ela ia checar valor da minha espada.

Eu já devia ter uns 20 anos quando pensei que minha espada poderia ter algum valor. Depois que briguei com minha mãe e meu pai fui morar na república definitivamente. Fui até o quarto onde guardávamos coisas velhas. Minha mãe não sabia que eu sabia que a espada estava lá. Imaginei como seria se meu avô estivesse vivo. O que ele me diria. Vovô, chegou a hora dela ser minha. Tem certeza, minha filha? Sim. Ele me daria a espada enrolada em um grande pano de algodão que ele por vezes usava como toalha. Eu adorava me enxugar naquele pano. Perdoa eles, querida. Brigar a gente briga, mas só se souber perdoar. A vida fica muito triste sem pai nem mãe. Meu avô saberia emoção que eu sentiria. Cuide bem dela. Ela faz parte da sua história. Vou cuidar, vozinho. Eu o beijaria na testa antes de sair para pegar o ônibus. Mas nada disso aconteceu. Eu apenas a desenrolei do pano e a olhei embainhada, já turva pelo tempo guardada, enrolei de novo e saí. Deixei a medalha no lugar dela. Na república não a mostrei para ninguém. A guardei escondida sob meu colchão. Nos raros momentos de solidão eu a retirava e ficava olhando seus detalhes: as flores e folhagens esculpidas na bainha não eram do Brasil. Assim como a pedra que cravejava a parte inferior do punho. Aliás, o punho não tinha detalhes, apenas era firme. Às vezes eu brincava com ela, ficava fazendo movimento de combate. Me machuquei uma vez. Fiquei com um roxo nas costelas por uns cinco dias. Quando a faculdade acabou eu não queria voltar para casa de meus pais. Voltei. E prometi pra mim que assim que tivesse dinheiro iria embora. Então lembrei da espada.

Moça, esta espada é uma espada muito especial. Ela foi em punhada por D. Pedro às margens do Rio Ipiranga no dia da independência. De lá para cá ela rodou por muitas mãos. Nunca foi para um museu porque, dizem, não era a espada oficial do imperador. Era uma que estava alí, na cinta de um soldado de sua confiança, me disse a vendedora sem tirar o dedo que arrastara até o preço da espada anotado em um grande livro vermelho. E qual o seu preço, hoje? perguntei.

Antes de sair da república a coloquei novamente em um pano e segui para um banco. Precisava do dinheiro, tinha que fazer dinheiro para ir embora de vez. A moça do banco me disse que eles pagariam o peso dela. Descobri que a espada era de prata e a pedra não tinha nenhum valor. Consegui mil e duzentos pela penhora. Fui embora pra Bahia. Isso foi há tanto tempo que já não sei mais o que pensar. Sinto saudades do nordeste, do calor e das praias, dos turitas e do trabalho. Mas gosto de atravessar a rua Direita nos domingos pela manhã. Gosto de ver minha mãe de vez em quando e saber que ela está bem sem meu pai. E ver meus irmãos que meu pai tem com sua segunda esposa. Mas sentir aquela espada novamente em minhas mãos seria mais que voltar ao passado, seria ter um passado, seria possuir minha história e saber que toda aquela baboseira de D. Pedro é uma grande farsa da vendedora. Seria, antes ainda, consertar o erro de ter penhorado parte de minha alma. Moça, qual o preço? insisti. Algo em torno de vinte e cinco mil, ela disse me medindo. Obrigado, respondi sorrindo um aceno de cabeça. O domingo estava agradável, segui novamente para a praça. Talvez o passado não tenha preço.


fim


**

ML, novembro de 2005, alterações primeiras em janeiro de 2006, segundas em setembro de 2006

Comentários

Anônimo disse…
Muito linda a mensagem que transmitiu....
Eu tenho uma pedra que uma paixão antiga me deu, eu guardo ela faz quase 6 anos. Aos olhos das pessoas ela não possui nenhum valor, mas para mim ela vale mais do que qualquer pedra preciosa, ela me lembra de uma passado mágico, inesquecível e único!!! Além disso ela me deu sorte, trouxe ele de volta para mim...mas de um jeito diferente, talvez amigos, talvez amantes....independente de qual o jeito, espero que para sempre!!! beijos

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