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_contos noturnos [1/10]


1. O assalto

São Paulo, após certa hora da noite, ganha outro tipo de vida. Talvez pelas sombras que insistem em permear a luminosidade amarelada das ruas, talvez pela altura dos prédios que ficam acima dos postes tampando o céu e criando longos cânions urbanos sem vida – e luz – natural. O ambiente adequado para outros tipos de vida.

Às margens do rio Pinheiros muitos carros circulam sem parar. Um corredor viário que liga três regiões da cidade. A vida, às duas margens, ganha todo tipo de tons. Tons acinzentados de grandes complexos e ligações viárias, um labirinto monumental. Cores brilhantes de grandes prédios de diversas corporações nacionais e multinacionais que vêem na localização um privilégio e uma estratégia para se movimentar na cidade. Cores amarronzadas das diversas favelas que se espalham ao longo de todo o rio frente a frente – em margens opostas – com bairros ricos.

Já passava das dez da noite. Fazia calor na cidade, muitos carros e poucas pessoas nas ruas.

Continua andando e fica pianinho.

A maior parte dos locais escurecidos pelas sombras que a cidade cria sobre si são inóspitos. Ou deveriam ser tidos como tal. Mas muitas pessoas vivem sob pontes, em jardins públicos, ao longo de grandes paredes sem janelas ou sob um pequeno toldo plástico de uma vitrine qualquer em uma rua qualquer. E não se importam que o quintal de suas casas seja o local de trânsito de pessoas que saem do trabalho ou que estão indo trabalhar ou, ainda, pessoas não sabem o que é trabalho.

Os dois, quietinhos. Dá a carteira. Anda.

Dizer que assaltos são comuns nestas regiões seria, no mínimo, incauto. Assaltos são comuns na cidade toda. Na zona leste temos pobres que assaltam pobres. Na zona sul, pobres que assaltam ricos. Na zona oeste, pobres que assaltam a classe média. Na zona norte, pobres que assaltam pobres e ricos e classe média. Na região central temos pobres que assaltam qualquer um. No centro expandido temos ricos que assaltam pobres e ricos e o que mais aparecer.

Calma, não precisa ficar nervoso. Toma a carteira. Quer o celular?

Ouvir tiros é um pouco comum, também. Na verdade, as pessoas não sabem muito bem diferenciar o que é tiro e o que é outro barulho. Mas sabem identificar um morto quando o vêem.

Cala a boca. Eu pedi o celular? Cala a boca, seu filho-da-puta. Paçoca, pega os celulares também. Vai, Paçoca.

Os mortos, na cidade, às vezes chegam a feder sem que ninguém os encontre. Em meio a milhões de pessoas, todos os dias um morto fica perdido, esquecido. As vezes é difícil diferenciar o cheiro de um bicho morto com o de uma pessoa. Retira-se o cachorro morto do terreno baldio, mas o cheiro parece ter impregnado a rua toda. Misturado com o cheiro acre do Rio Pinheiros, torna-se impossível dizer que algo mais fede além do rio.

Pára, porra. To falando pra ficar quieto. Paçoca, segura o cara, que merda.

O cara é forte, mano. Calma aí que eu já pego.

Porra, Paçoca. Sai, sai.

Vira essa porra pra lá, Manivela!

As pessoas não souberam dizer se era o estouro da combustão no motor de uma motocicleta ou outra coisa qualquer. Algumas ainda chegaram a pensar que aquele homem que entrou no bar correndo deveria ter sido assaltado ou algo assim. Mas todos, sem sombra de dúvida, souberam, na manhã seguinte, que aquilo ali caído era um corpo gelado, suado, roxo e bem vestido. E o rio continuou a feder. O rio fede. Sempre.

***

continua

ML

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