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_contos noturnos [7/10]

7. O assalto: 2


Perto das nove horas da noite o silêncio só é perturbado pelo ruído de televisores ligados em barraco esparsos. A televisão substituiu a fé e é o ópio dos pobres. A escuridão dos becos torna o silêncio ainda mais opressor. Os olhos de Gilsinho demoraram para se adaptar à luz forte do lampião aceso no barraco de Manivela.

E aí, Vela? Cadê a Dona Ara?

Suas mãos cobriam a incidência bruta da luz.

Saiu. Ta no culto. Senta aí.

Sobre a mesa, um dos únicos móveis na cozinha, havia uma gororoba estranha.

Quer?

Porra, Manivela, vamo aê. A gente tem que seguir o combinado, cara.

Mas me deu fome, Gilsinho. Cacete, como vou roubar a casa do filho-da-puta com fome? A primeira porta que eu abrir vai ser a da geladeira.

Riram juntos. Saíram no escuro da favela a caminho do bairro chique, cada um com uma mochila nas costas.

Aí, te falo: se o filho-da-puta não tivesse no "X" eu ia matar ele hoje. Não se fala comigo como ele falou! Otário.

Aê, Gilsinho, seguinte: o cara ta fudido já; mandou matar os dois. Rodou.

E com um tiro na pança!

Era para ser engraçado, mas a sua raiva não deixou que rissem.

Devia ter morrido!

Foram de ônibus. Carro, só para a volta.

Assim que o marido foi preso, Juliana se mudou com as filhas para a casa que tinham na Cantareira. O amante foi junto. Manivela e Gilsinho sabiam disso. Chegar lá foi fácil. E o lugar é ermo: bacanas que gostam de morar perto da natureza se expõe a perigos que acreditam não poder acontecer com eles. O bairro: terrenos grandes, casas com piscinas e saunas e lareiras, ruas largas, carros caros, vizinhos distantes, poucos muros, alguma segurança. Pouca, talvez, em uma cidade como São Paulo. Muita privacidade. Isso só é bom para assaltantes.

Manivela, seguinte: a gente entra pelo viznho, a casa ta vazia, abandonada. Vai até a quadra, lá por cima, e sai direto na churrasqueira. A gente vai entrar pela porta de vidro que dá na piscina. Ligou?

Liguei. Quem te deu a letra?

O piu da rua. Ele é primo do Calcinha, lá da quebra.

Fala mais baixo.

Os gravetos não impediam que eles fizessem silêncio. Assaltantes devem ser magros e estudar os felinos. Eles são felinos. E ferinos.

Gilsonho, ta rolando uma revolução aqui, cara.

Onde?

Na minha barriga, velho; que porra, ta tudo se mexendo.

Fala baixo, Manivela. Cacete.

O acesso via piscina dava para uma sala de jantar espaçosa e arejada, com poucos móveis além da grande mesa de vidro. Do lado esquerdo um balcão divide cozinha e sala. Descendo a balaustrada que separa a sala de jantar da sala de reuniões tem-se também acesso às escadas que levam ao piso superior da casa, onde ficam os quartos das crianças e a suíte do casal. Sobre a cozinha há um banheiro para as crianças. As portas dos quartos dão para um mezanino que permite a visão da sala de jantar e da cozinha. Se a área externa estiver iluminada, torna-se também visível. Manivela e Gilsinho não contavam com isso.

Entraram pela área de churrasco. Manivela começou tropeçando em um espeto que estava fora do lugar. Muito barulho. Silêncio. Continuaram. Da piscina eles tinham uma visão geral do campo de guerra: a churrasqueira à esquerda, a sauna à direita. Nas costas, a quadra poliesportiva. A frente, a porta. Estava todas as luzes apagadas, seguiram em frente. As luzes se acenderam e os assustou. Apenas sensor de presença funcionando. Com as luzes acesas a porta foi aberta em menos de um minuto. E sem barulho. Quando viram o mezanino logo à frente deles, foram rápidos e desceram para a ala inferior, das salas de reunião, vídeo e lareira, todas separadas apenas por móveis. No meio da escada, Manivela peidou. Um peido alto e longo. Ambos pararam para escutar o resultado deste barulho. Manivela tinha um susto engasgado na cara. Ouviram algumas vozes. Silêncio.

Cacete, seu filho-da-puta, faz silêncio.

Continuaram.


***


Juliana, que merda. Já falei pra você parar de levar as crianças nesses fast-foods. Elas ficam podres.
Ah, pára com isso, Adélcio. Você que tem esse estômago de passarinho. E outra: peidar é normal!
Porra, Juliana, não desse jeito...


***


Bia, você acha que foi a mamãe ou o tonto?
Não sei, Bru. Mas deve ser ele, né? A mamãe não ia peidar assim!
Cinco minutos.
Noooossa. De novo. Esse foi feio!


***


Cacete, Manivela! Pára com essa porra desse barulho. Segura essas bufas, irmão!

Gilson, ta foda, cara. Parece que tem um bicho mordendo minha barriga por dentro, cara. Preciso de um banheiro, quero cagar, mano!

Cacete de filho-da-puta, isso é brigar com a mãe por causa de mistura. Faz o seguinte: dá aqui sua mochila. Você me espera lá fora, vou pegar o que der e a gente vaza.

Falou.

Em menos de cinco minutos a sala de baixo e a cozinha estavam reviradas, desorganizadas e saqueadas. Qualquer objeto de metal ou coisas que parecessem ter valor, além dos eletrônicos que conseguiram carregar nas mãos, passaram para dentro do bolsos da calça de Gilsinho e das mochilas. Ficou pesado o pacote final (um pacote com sabonetes, latas de óleo, talheres. Eles eram pés-rapados). Hora de ir embora. Encontrou Manivela sobre a mesa da sala-de-jantar.

Cacete, Manivela, que porra é essa? Vamo, vamo.

E foram.


***


Pela manhã, Juliana acordou com o canto dos pássaros que populavam seu quintal. E o resto da casa acordou com os gritos dela. Adélcio correu. As crianças também. Os quatro vislumbraram, do mezanino, a cozinha mais desorganizada que já haviam visto. Mas demoraram para entender o que havia acontecido. Desceram e se depararam com as outras salas feitas em Sodoma e Gomorra após o ataque da fúria divina. Subiram, em um silêncio precavido, as escadas para a cozinha e a sala-de-jantar.

Que porra de cheiro é esse?

Não sei, Adélcio.

Parece... de cocô.

É mesmo, Bia.

Juliana virou a cabeça e vomitou enquanto apontava para a mesa de vidro. Sobre toda a superfície translúcida havia uma massa amarelada e não tão espessa, como um doce-de-leite ainda quente. Eram fezes humanas.


***


continua

ml

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