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_contos noturnos [3/10]

3. Saída


No galpão da Distribuidora Seta de Bebidas Ltda., à noitinha, há um movimento único: pessoas saindo, caminhões entrando. O portão é tomado pelo burburinho dos motores e o barulho dos empregados que saem aos tropeções para logo ganhar as ruas a caminho de casa, rumo ao descanso de colchões furados e comida fresca – a mesma da marmita de amanhã. Meia hora depois os funcionários de alto escalão – entenda-se todos aqueles que não têm trabalho braçal – saem, já com o caminho desobstruído, de volta para casa. Marcelo Mortica, gerente regional de vendas, um homem abastado, rico em adiposidades e poupança, costuma sair ainda mais tarde. Chegar cedo em casa significa ter que aturar a mulher por mais tempo.

Aquela terça-feira foi normal até as 19 horas. Marcelo Mortica saiu do escritório acelerado. Parou no banheiro, no corredor. Voltou, pegou o café pré-trânsito na máquina da copa de seu andar e seguiu direto para o estacionamento. Os elevadores estavam vazios. No hall, apenas os seguranças do primeiro turno noturno se ajeitavam nas cadeiras despretensiosas. Seu carro estava no mesmo lugar de todos os dias, assim como o cone delimitador e as chaves em seu mesmo bolso. O motor de seu carro rolou suave, afinado e robusto. Marcelo Mortica estava, neste momento, discutindo consigo mesmo qual a decisão mais acertada: ir para casa direto ou comer uma pizza antes. Ligou o carro e saiu no mais cotidiano de seus dias. Na saída do estacionamento acendeu o farol tardiamente e deu de cara com um caminhão da distribuidora.

Seu filho-de-uma-puta! O que está fazendo aqui a essa hora? Seu caminhão deveria ter sido entregue há uma hora atrás!

O acindente foi banal, na verdade. E a distração foi do gerente, sem sombra de dúvidas, discutiram os seguranças no dia seguinte entre si.

O que é que você está pensado, hein? Como é seu nome? Quero sua chapa. Amanhã vá direto ao RH. Você está demitido. Guarde está merda de caminhão e vá embora!

Mas que merda, que merda. O que é que esse idiota está fazendo aqui a essa hora!, pensava o gerente enquanto discava de seu celular para casa.

Oi. Olha, bati o carro aqui na firma, vou chegar tarde, tenho que resolver isso. O quê? Eu não quero saber. Manda elas fazerem a lição. O quê? Não, não. Ô Juliana, cacete, não quero saber, já disse!

Depois de desligar o telefone foi até a frente do carro olhar o tamanho do estrago. Não era nada, ele sabia disso. Mas precisava confirmar. Voltou, ligou o carro e saiu. Foi direto para casa. Durante meia hora Marcelo desfiou sua vida. Estava casado há tempo o suficiente para engordar como um cachaço, mas não para aprender a amar sua mulher uma segunda vez. Desde que seu pênis se perdera de sua vista até mesmo os amores solitários se tornaram difíceis. Sua preocupação no momento era descobrir maneiras de ver por menos horas quanto possível as paredes de sua casa. Acordava cedo (antes da mulher) e chegava tarde. Mas evitar o dia-a-dia adia o invevitável. Chegar em casa passou a se tornar difícil. Primeiro ele parava na esquina. Procurava a janela de seu andar, luzes acesas, indícios de vida noturna. Depois passou a desconsiderar as possibilidades. Ao entrar em casa se tornava uma pessoa calma e paciente, ouvia todas as reclamações da mulher sem se dignar brigar. Depois passou a não mais ouvir. A barreira surgia sempre que sua esposa se aproximava a menos de dez metros dele. Depois, o inevitável: as brigas. E chegar em casa passou a ser o pior momento do seu dia. Neste dia, particularmente ele previa as possibilidades. Mulheres que brigam constantemente se tornam previsíveis. Ele calculou o tempo de briga, os assuntos que ela buscaria na caixa-preta que eles guardavam para estes momentos de íntimas grosserias.

Boa noite.

Existe um silêncio, um tempo bizarramente curto, que precede o esporro. Este silêncio ensurdece os pensamentos, não os ouvidos.

Você acredita que bateram no meu carro, hoje, na firma?

No seu não, Marcelo, no meu. De novo.

Silêncio, novamente. Ele terminou de entrar em casa e deixou a pasta, o paletó e outras bugigangas sobre a mesa.

E quando vai ficar pronto o conserto, pergunta ela.

Logo. Segundo a seguradora, em uma semana.

Silêncio.

Marcelo?

Ele olha para ela com pouco espanto e alguma esperança de que algo pode ser diferente. Não sabe porque, mas sempre que ela é doce ele tem a sensação de tudo entre eles poderia ser diferente a partir daquele momento, de que as pequenas adagas que carregam sob o manto do silêncio poderiam, neste momento de doçura, cair e enferrujar. Mas surge outro silêncio.

Cadê as crianças?

Juliana o olha de lado por não saber muito bem como expressar o ódio que sente.

Crianças, Marcelo? Crianças? você tem coragem de bater o meu carro e agir como se nada tivesse acontecido? De fingir se preocupar com as crianças para fugir ao problema que trouxe para casa?

A voz crescia sobre o marido em uma erupção de lágrimas e perdigotos raivosos. Nada a faria parar agora, disso Marcelo sabia. Nada.

Eu apenas quis saber, Juliana.
Você sempre quer saber quando não precisa, Marcelo.
Quando estamos em algum churrasco eu cuido delas. Eu vou levar e buscar na escola todos os dias. Você não é capaz nem de trazer o meu carro inteiro para casa!

Carro que eu paguei, sua louca! Filhos que eu crio com o meu trabalho, com as roupas que eu compro, com a comida que eu pago, com os brinquedos que eu dou. Você, sua louca, até você, eu pago todas as suas contas, eu banco o seu mau-gosto desgraçado, essas merdas de sapatos horríveis com estes vestidos que não cabem em você, tudo eu que pago!

Você acha que é melhor que eu só porque trabalha? Você é uma merda, Marcelo! Todos os seus amigos se deram bem, todos ganham mais que você, tem uma casa melhor, carros melhores, roupas melhores. Nem gordos eles são, seu infame!

As crianças, neste ponto, estavam na porta da cozinha. Não podiam erguer a cabeça, o ar pesava, opressor, sobre suas mentes ingênuas.

Vá à merda, Juliana! Você vai sempre ser assim? À merda, Juliana!

Saiu sem dizer palavra. Até as crianças sabiam que ele chegaria no meio da madrugada muito bêbado. Ninguém tentou impedí-lo.

***

continua

ml

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