2. Encontro de amigos
O dia raiou cedo. Já fazia um tremendo sol às oito horas. Quando deu meio dia a favela era uma festa de roupas, lençóis, toalhas, panos de prato, camisas de times, tudo limpo e estendido nos varais improvisados que permeiam os becos; festa de crianças brincando na rua com a água suja que escorre pelas vielas; festa de barro vermelho, fumaça de fogões a lenha. Incêndios são comuns nas diversas favelas de São Paulo.
E aí, Manivela!
Fala, meu velho! Como é que 'cê tá?
Manivela ganhou esse apelido ainda jovem. A mãe dele dizia que aquele era um morro de mulheres de coxas grossas. Afinal de contas, era um morro. E o manivela subia o morro atrás das garotas fazendo movimentos giratórios com a mão direita, como quem gira uma manivela, mesmo. Isso por todos os becos. E logo ficou conhecido como Manivela.
Na miúda, Manivela, na miúda. Tem três que tão do lado de lá, no X. Eu tava junto, liga?! Mas aí, nem fico abalado, tá ligado? Vacilaram.
E o que 'cê tá fazendo agora?
Parado, Manivela. Para esfriar um pouco. Estou entregando bebidas. Vamo ali no seu Josias.
Manivela se tornou conhecido por toda a favela não por seu apelido, mas por ter matado um garoto quando tinha oito anos. Bateu com uma pedra na cabeça do menino até a morte, até deixar a cabeça dele deformada de tão mole. Depois ficou acocorado ao lado do menino fazendo movimentos circulares sobre a cabeça esbagaçada da outra criança. Dona Creuza chegou muito tempo depois, tirou ele de cima do corpo. Ele apenas a olhava e esperava a reação. Ela não sabia como reagir.
Aí, aquele é o caminhão que dirijo, liga? Entregar bebidas dá um dinheiro ruim, mas é limpo. E tem o lado bom: tem cerveja em casa a qualquer hora. Porque cê num passa lá, véi. Sem erro. E depois, você é da casa, cara. Da casa, tá ligado.
Valeu, Gilsinho. To ligado. Lá num tem tempo ruim. E a tua mãe, véi, como é que tá?
Quando se conheceram a favela era pequena, tinha poucos tons escuros e não mais que algumas quadras. Quando se conheceram Manivela ainda não havia matado. Nem Gilsinho. Isso não quer dizer que um dia perderam a ingenuidade. Na verdade, nunca a tiveram. Nasceram no morro, escolados no morro, marginalizados desde o útero de suas mães antes mesmo de serem concebidos. A marginália é hereditária, mas eles não sabem disso.
Então véi, a Dona Ara perguntou de você ontem. Cheguei no mocó e ela tava lá, sentada, a cara fechada de sempre. Tava até preocupado, po, nunca vi ela assim. A mulher é sangue no zóio, já teve do lado de lá do muro, mas nunca me assustou. Respeito, né! Ontem, véi, ela tava era feia na fita! Aí perguntou de você. Disse que no terrero sentiu que tinha acontecido algo. Aí,
Manivela, cê assustou a preta-véia lá de casa!
Um dia Gilsinho assaltou uma casa de balas. Ele tinha 12 anos. Entrou e levou o que podia no pequeno saco que carregava. Mas nenhum doce. Só dinheiro. Quando ganhou a rua o dono da doceria começou a correr. Correr atrás do moleque. Gilsinho correu mais para o centro, correu como um bicho que procura sua toca para se proteger. Antes de duas quadras de corrida o homem já o alcançava. E a infância de Gilsinho não permitiu que dominasse o medo e usasse sua clara vantagem de 0.9 cm no pente. Só depois que caiu e se viu rodeado de gente é que tirou arma. As pessoas correram. O dono da loja assaltada o olhou no fundo dos olhos com extrema admiração. Tirou a capa que cobria cabeça do garoto. Era uma criança, claro. Ofegando ainda, chacoalhou a cabeça em desaprovação. Pegou a arma. Antes de tirar ela da mão do garoto tomou um tiro. Na esquina seguinte estava Manivela esperando por ele. Saiu ileso do assalto que fez.
Gilsinho contabilizou um joelho estourado e poucos reais.
Dá uma cerveja, seu Josias. Bem gelada. Esse copo tá sujo, dá outro.
Isso é um bar, não um restaurante.
Obrigado, seu Josias. Então véi, cê lembra o dia que eu fudi o joelho por causa daquele velho da doceria? Ele morreu cara! Morreu e ninguém matou o cara. Responsa ter me parado aquele dia, véi.
Eu nem lembrava mais, doido. O cara tava vivo? Cacete! Que cagaço eu passei aquele dia! Ele não tá mais com doceria, não. Entrego umas caixas lá onde era a doceria, antes. Agora é bar!
E como é isso? De entregar bebidas?
Ah, véi, normal. Vai com o caminhão pra lá, levas umas coisas. Volta, carrega, entrega. Nada demais. Só é foda o horário, né véi? Horário fixo, trânsito o dia todo, esse monte de cerveja e não bebo nenhuma!
Olha lá, o cara do caminhão tá te chamando.
Deixa ele. Hoje não. Hoje eu to no morro, véi!
***
continua
ML
O dia raiou cedo. Já fazia um tremendo sol às oito horas. Quando deu meio dia a favela era uma festa de roupas, lençóis, toalhas, panos de prato, camisas de times, tudo limpo e estendido nos varais improvisados que permeiam os becos; festa de crianças brincando na rua com a água suja que escorre pelas vielas; festa de barro vermelho, fumaça de fogões a lenha. Incêndios são comuns nas diversas favelas de São Paulo.
E aí, Manivela!
Fala, meu velho! Como é que 'cê tá?
Manivela ganhou esse apelido ainda jovem. A mãe dele dizia que aquele era um morro de mulheres de coxas grossas. Afinal de contas, era um morro. E o manivela subia o morro atrás das garotas fazendo movimentos giratórios com a mão direita, como quem gira uma manivela, mesmo. Isso por todos os becos. E logo ficou conhecido como Manivela.
Na miúda, Manivela, na miúda. Tem três que tão do lado de lá, no X. Eu tava junto, liga?! Mas aí, nem fico abalado, tá ligado? Vacilaram.
E o que 'cê tá fazendo agora?
Parado, Manivela. Para esfriar um pouco. Estou entregando bebidas. Vamo ali no seu Josias.
Manivela se tornou conhecido por toda a favela não por seu apelido, mas por ter matado um garoto quando tinha oito anos. Bateu com uma pedra na cabeça do menino até a morte, até deixar a cabeça dele deformada de tão mole. Depois ficou acocorado ao lado do menino fazendo movimentos circulares sobre a cabeça esbagaçada da outra criança. Dona Creuza chegou muito tempo depois, tirou ele de cima do corpo. Ele apenas a olhava e esperava a reação. Ela não sabia como reagir.
Aí, aquele é o caminhão que dirijo, liga? Entregar bebidas dá um dinheiro ruim, mas é limpo. E tem o lado bom: tem cerveja em casa a qualquer hora. Porque cê num passa lá, véi. Sem erro. E depois, você é da casa, cara. Da casa, tá ligado.
Valeu, Gilsinho. To ligado. Lá num tem tempo ruim. E a tua mãe, véi, como é que tá?
Quando se conheceram a favela era pequena, tinha poucos tons escuros e não mais que algumas quadras. Quando se conheceram Manivela ainda não havia matado. Nem Gilsinho. Isso não quer dizer que um dia perderam a ingenuidade. Na verdade, nunca a tiveram. Nasceram no morro, escolados no morro, marginalizados desde o útero de suas mães antes mesmo de serem concebidos. A marginália é hereditária, mas eles não sabem disso.
Então véi, a Dona Ara perguntou de você ontem. Cheguei no mocó e ela tava lá, sentada, a cara fechada de sempre. Tava até preocupado, po, nunca vi ela assim. A mulher é sangue no zóio, já teve do lado de lá do muro, mas nunca me assustou. Respeito, né! Ontem, véi, ela tava era feia na fita! Aí perguntou de você. Disse que no terrero sentiu que tinha acontecido algo. Aí,
Manivela, cê assustou a preta-véia lá de casa!
Um dia Gilsinho assaltou uma casa de balas. Ele tinha 12 anos. Entrou e levou o que podia no pequeno saco que carregava. Mas nenhum doce. Só dinheiro. Quando ganhou a rua o dono da doceria começou a correr. Correr atrás do moleque. Gilsinho correu mais para o centro, correu como um bicho que procura sua toca para se proteger. Antes de duas quadras de corrida o homem já o alcançava. E a infância de Gilsinho não permitiu que dominasse o medo e usasse sua clara vantagem de 0.9 cm no pente. Só depois que caiu e se viu rodeado de gente é que tirou arma. As pessoas correram. O dono da loja assaltada o olhou no fundo dos olhos com extrema admiração. Tirou a capa que cobria cabeça do garoto. Era uma criança, claro. Ofegando ainda, chacoalhou a cabeça em desaprovação. Pegou a arma. Antes de tirar ela da mão do garoto tomou um tiro. Na esquina seguinte estava Manivela esperando por ele. Saiu ileso do assalto que fez.
Gilsinho contabilizou um joelho estourado e poucos reais.
Dá uma cerveja, seu Josias. Bem gelada. Esse copo tá sujo, dá outro.
Isso é um bar, não um restaurante.
Obrigado, seu Josias. Então véi, cê lembra o dia que eu fudi o joelho por causa daquele velho da doceria? Ele morreu cara! Morreu e ninguém matou o cara. Responsa ter me parado aquele dia, véi.
Eu nem lembrava mais, doido. O cara tava vivo? Cacete! Que cagaço eu passei aquele dia! Ele não tá mais com doceria, não. Entrego umas caixas lá onde era a doceria, antes. Agora é bar!
E como é isso? De entregar bebidas?
Ah, véi, normal. Vai com o caminhão pra lá, levas umas coisas. Volta, carrega, entrega. Nada demais. Só é foda o horário, né véi? Horário fixo, trânsito o dia todo, esse monte de cerveja e não bebo nenhuma!
Olha lá, o cara do caminhão tá te chamando.
Deixa ele. Hoje não. Hoje eu to no morro, véi!
***
continua
ML
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