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_contos noturnos [4/10]

4. No bar, com morte


Era um lugar discreto, sem muita barulheira ou música alta. A cerveja sempre gelada e uns salgadinhos para comer. A pimenta era generosa no sabor e na ardência, pedia mais cerveja. As camisas de times de várzea do interior de SP (Bananais, São Carlos, Bauru, Araraquara, Itú, São Lourenço da Serra e outros) – inclusive a do time do bairro – davam ao bar um clima amistoso, de todas as torcidas. Depois das oito da noite a fumaça do churrasco tirava os bebedores de plantão de suas poltronas confortáveis e os levava às cadeiras de metal que se espalhavam pelo bar: o movimento começava a ficar bom, as mesas todas ocupadas, o falatório aumentava. Mulheres poucas apareciam, mas eram sempre pauta das conversas que somavam carros e futebol. Vez por outra um assunto sério em uma mesa mais isolada aparecia, mas ninguém percebia. Mas coisa rara. Era um lugar de descontração pura e besta, como a paulistada gosta: tem comida e cerveja gelada e nenhuma mulher para encher o saco. Mas era. Até uma hora atrás todo o bar estava movimentado e até alegre. Agora temos três corpos caídos no chão antes branco, garrafas e cadeiras quebradas espalhadas na rua e no único degrau entre a calçada e o interior do bar. Havia também, agora, um silêncio aos poucos quebrado pela narração do jogo que insistia em passar na TV. Aqui nunca se ouvira falar de brigas sérias – daquelas que passam dos bate-boca futebolísticos e chegam às juras de morte caprinas, nordestinas, reais, afiadas na ponta da faca e acertadas no gatilho.

Duas horas antes

E aí? E o jogo?

Daqui a pouco, Bruno. Manda mais um copo, seu Luiz.

Dia de jogo. O bar estava movimentado e mais pessoas chegavam. Joelho de porco e churrasquinho.

Bruno – continuou Pedro --, você lembra do Paulo? Paulo Lemos?

Não. O que tem?

O corno?, insistiu ele.

Sei, sei. O marido da Sílvia, a amante do Alcântara, não é? O que tem?

Você nem imagina. Hoje, logo cedo, indo pro trabalho, devia ser umas sete e meia, por aí, tava no centro, já. Tudo parado na Tiradentes e eu com pressa. Tinha uma reunião – aliás, fechei o negócio.

Tá. Mas e daí?

Fui sair da Tiradentes, cortar caminho, porra, não dava para esperar mais. Embiquei meu carro, ele é grande, os caras respeitam quando forço – ele mimetizava o pé no acelerador e os solavancos do controle do carro – quando um mané não me deixou entrar. Tava filmado o carro, não dava para ver nada além dos vidros pretos, e eu tentanto entrar – empurrava o volante invísivel que tinha nas mãos como se quisesse enfiar o carro no vão que não existia.

E daí, Pedro?

O filho-duma-puta não vai e me raspa a lateral bem na hora que estava saindo da muvuca? E, o pior, baixou o vidro para me xingar. Quem era?

O corno!

Em chifres. Quando percebi, baixei meu vidro e xinguei: "seu corno, corno filho-da-puta" e fui embora, não dava para parar. Po, meu, minha reunião me esperava.

Porra, o chifrudo ralou seu carro? E ele vai pagar?

Vai. Vou fazer ele pagar. Sei onde encontrar a mulher dele.

A piada não era para rir.

Olha o Mortica. Ele só engorda, cara. Vai morrer de tanto comer! E vem bufando.
Diz que o casamento dele está por um fio, Bruno. E olha que ninguém come a mulher dele.
Desta vez riram em cumplicidade. Marcelo passou por eles.

Fala, Marcelo.

Oi.

Passou e foi para longe.

Diz que a Sílvia tá saindo com outro cara, agora, um tal de... Não lembro o nome. Mas diz que está saindo em plena luz do dia, todo mundo sabe, até o Paulão.

Que coisa, hein!

Pois é.

O crime

Porra, meu, me molhou inteiro. Seu bêbado do cacete!

Vai se foder, Pedro. Você é um barril de pinga com mel. Mas que merda, o que essa cara tá fazendo com essa moto?

Cacete, Pedro, sai. Sai.

Os tiros pipocaram sem estrondo. Ninguém entendeu muito bem o que era aquele barulho todo. Havia um motoqueiro em frente ao bar que acelerava sua moto e fazia o barulho. Muito barulho. Fumaça e barulho. Alguns taparam o ouvido quando a vela estourou a primeira vez. Depois mais duas e mais duas. Saiu um homem de dentro do bar, sentou na garupa e foram embora. Dentro do bar Pedro e Bruno estavam caídos e sangrando, já mortos os dois: cada um com um tiro no peito e outro na cabeça. Ao fundo, Marcelo também sangrava pela enorme barriga e tentava segurar o sangue com a mão tampando o furo que jorrava ébano espesso. De repente todos no bar se deram conta do que aconteceu e correram para a segurança de suas esposas e seus lares. Ainda tinha um jogo inteiro pela frente.

Uma hora depois havia uma tremenda aglomeração fora do bar já cercado, de fitas amarelo e preto. Uma ambulância tentava avançar sobre a platéia enquanto dois policiais e dois bombeiros tentavam achar a melhor maneira de tirar Marcelo (conforme constou nos autos: Mortica 42 anos casado duas filhas) de dentro do bar. Seu peso era realmente um problema que a maca talvez não resolvesse.

Segundo testemunhas, um homem alto e magro, cabelos grisalhos, trajando um terno cinza "elegante", comentou alguém, entrou no bar com a arma na mão. Era um 38 que Marcelo Mortica comprara por R$40 de um motoboy da distribuidora em que trabalha. As testemunhas: do lado de fora do bar um motoqueiro fazia barulho para tapar o som dos tiros. O homem de cinza saiu de dentro do bar e pegou a garupa da moto. Foram embora. As pessoas que antes estavam no bar, agora testemunhas, disseram não entender o que acontecera até que gritaram lá de dentro: "porra, mataram o Marcelo". Mas ele não estava morto. Bruno e Pedro sim. O primeiro tiro apenas passara direto por eles, atravessou a estufa de coxinhas e entrou na barriga adiposa do Mortica. Dois correram e foi o suficiente para o resto entender e correr.

Da maca avermelhada pelo sangue de Marcelo vinham mugidos de dor e raiva. Entredentes era possível distinguir a raiva. A dor, não. Ele dizia: porra, o filho-da-puta me acertou. Eu avisei pra tomar cuidado comigo.


***

continua

ML

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