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_contos noturnos [5/10]

5. Viagem ao centro da terra


Há diversas maneiras de isolar socialmente as pessoas, de estratificar socialmente a massa. Coca-cola ou baré-cola é um tipo de estratificação. Rádio ou televisão na sala de casa é outro. A escola que os filhos freqüentam e com que tênis freqüentam. Na verdade, tudo pode ser estratificação social. Até mesmo bic ou mont-blanc. Ou se você tem um carro ou pega ônibus. Em algumas cidades, usar trem ou metrô faz diferença. Em São Paulo, andar de trem, simplesmente: a linha que margeia o rio Pinheiros é para classe média, com trens sofisticados que tocam jazz para os passageiros e mantém o ar-condicionado ligado o tempo todo. E todas as portas funcionam. As outras linhas de trem da cidade são para a ralé, sem música ou qualquer outro conforto.

E aí, Bundinha?

Freio cumprimenta o amigo. Um tapa e um soco. Só nas mãos. Na estação Vila Olímpia da CPTM eles estão como se em casa. Não há os perigos que assombram as outras linhas de trens urbanos da cidade. Como a que vai para o ABCD. Eles falam na altura que quiserem. E o que quiserem falar. Sentam e olham para quem quiser. São como moleques de classe média andando em trem de classe média. Talvez um pouco mais mal-educados que a média. Estão na linha de trens da CPTM que margeia o rio Pinheiros. Bolsas Louis Vuitton e ternos Armani aparecem por ali de vez em quando.

Vâmo aê?

Ir para a zona leste era sempre uma aventura. Mas o zu é mais barato lá. E tem a Dani e a Isa. Elas fumam também. E são demais.

Freio, liga o que rolou com o pai do moleque da Dani? Não sei o nome dele. Mataram o cara. Tomou um tiro na barriga e sangrou até morrer. A Dani contou que o cara era tão gordo que o peso dele deitado fazia jorrar muito sangue. Não chegou ao hospital. Diz que ele pagou uns caras pra matar o amante da mulher dele. E os caras mataram ele também.

Eles conversavam livremente. Falando alto e rindo. Nos trens da cidade é comum que se venda de tudo. Bebidas – sucos, refrigerantes, cervejas --, chocolates, caça-palavras, eletrônicos portáteis, livros e revistas. O "plantas que curam", da berinjela-arrasa-câncer, é um clássico da literatura ferroviária urbana. Quase uma lenda. Todos os vendedores conhecem diversas pessoas que se curaram do problema seguindo apenas receitas do livro. Mas só eles as conhecem.

Dá um chiclete. Um real? Taí. Mas é sério, Freio. Mataram o amante, o corno, e o amigo do amante que nada tinha a ver com a história. E a dona ficou aí pra continuar dando pra quem ela quiser. Que imbecil. Desce, moleque. Aqui já é Presidente Altino.

A estação de Presidente Altino é toda em concreto, cinza como a cidade parece vista de cima do Terraço Itália. Nela, as fantasias da moda trocam de endereço e passam a ser fornecidas pelo Brás. Não pela França. Os cabelo loiros e as unhas bem pintadas tornam-se mais baratos e os perfumes, mais naturais. Baixam a voz ao pisar na plataforma. Vão em silêncio até a Barra Funda para pegar o metrô. Lá encontram com as garotas. Demais. Dani e Isa.
Vocês viram o que aconteceu com o pai do meu paquera? Saiu até no jornal.
Um selinho. Dois. Já na zona leste, no Tatuapé, acendem um zu na rua. Sentem-se novamente livres.


***


continua


ml

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